Nas últimas semanas estive em encontros com executivos e profissionais de várias áreas. Em todos, emergiu um desconforto comum: algo profundo não está funcionando na forma como vivemos o trabalho.
De um lado, a perplexidade diante de modelos de gestão cada vez mais difíceis de sustentar. De outro, a contradição entre valores pessoais – escolhas existenciais mais amplas, preocupação com o planeta, busca de sentido – e práticas organizacionais que já não fazem sentido.
A pergunta não dita é: por que não desafiar os sistemas que perpetuam práticas obsoletas? Entre os mais experientes, a resposta costuma ser o cinismo: deixar o tempo passar na esperança de um futuro melhor. Entre os mais jovens, o pragmatismo: “tenho boletos a pagar”.
Nesse eixo entre cinismo e boletos, instala-se uma anestesia existencial. Muitos dobram sua integridade em nome de uma promessa de felicidade futura que nunca chega. É como se deixassem para trás os melhores anos da vida, submetidos a escolhas ditadas mais pelo medo do que pela convicção. Chamamos de cinismo, chamamos de pragmatismo, mas talvez seja apenas tristeza crônica camuflada. Um luto não autorizado pela morte de uma promessa: a de que o trabalho nos tornaria inteiros.
O que vejo não é ignorância, mas lucidez engavetada. Profissionais sabem que os paradigmas do século vinte colapsaram, mas seguem replicando rituais de práticas mortas, como se fosse possível devolver-lhes a vida.
Viktor Frankl, em “Em busca de sentido”, descreveu dois eixos possíveis: de um lado, a busca por momentos de felicidade e prazer como resposta à dor; de outro, a integridade, a coerência em viver segundo o chamado mais profundo da alma. Quando reduzimos nossas escolhas apenas ao primeiro eixo – buscando pequenas doses de alívio, justificadas por cinismo ou boletos – caímos no risco de um fracasso mais profundo: o fracasso da alma.
Hannah Arendt, ao acompanhar o julgamento de Eichmann, cunhou a expressão “a banalidade do mal” para mostrar como a renúncia à responsabilidade e a obediência a sistemas opressores podem gerar atrocidades. Guardadas as proporções, há um paralelo incômodo: quando não questionamos práticas que sabemos falidas, tornamo-nos cúmplices de sua perpetuação. E transmitimos às próximas gerações uma herança de conformismo e anestesia.
Falo também da experiência pessoal. Vindo de uma família humilde e trabalhando desde os quatorze anos, conheço a dureza dos boletos e de salários mais curtos que as necessidades. Ainda assim, sempre existiu em mim uma inquietude: os boletos, embora reais, escondem medos mais profundos – fracasso, exclusão, não pertencimento.
E se mudássemos de paradigma? Em vez de imaginar cada pessoa sozinha servindo a uma organização, poderíamos estabelecer comunidades que compartilham propósito e visão de mundo e que, em cada empresa, incomodam os sistemas que já não funcionam. Nessas comunidades, o apoio mútuo seria antídoto para a solidão e rede de suporte também quando os boletos assombram.
Quando esses profissionais se reúnem, reconhecem-se uns nos outros, compartilham frustrações e lembram das histórias de aprendizado e superação que viveram juntos. Esse eco vivo mostra que, mesmo em meio à pressão, existe potência coletiva.
Talvez esse seja o passo essencial para transformar o trabalho em algo que faça sentido e, ao mesmo tempo, resgatar a essência comunitária que é intrínseca à experiência humana. Não se trata apenas de eficiência organizacional, mas de recuperar a integridade como fundamento do humano no trabalho – e na vida.
*Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil