Paralelo ao processo de “reduflação”, em que as marcas diminuíram o tamanho de produtos mantendo ou elevando preços, há um movimento que agora afeta a formulação das mercadorias, em certos casos com o intuito de reduzir custos e proteger rentabilidade.
Nos últimos dias, o Valor contatou varejistas, fabricantes e fez visitas às redes de supermercados para tentar identificar as marcas e a intensidade dessas mudanças. Há situações em que fornecedores líderes em seus mercados decidiram, ao mesmo tempo, encolher o tamanho de produtos e alterar a composição.
A questão ganhou destaque semanas atrás, depois que a direção da rede de atacarejo Assaí, a segunda maior do setor no país, disse a analistas que as alterações na lista de ingredientes ganharam força. “A indústria tem se movimentado bastante, seja com redução de embalagem, seja com alterações nas fórmulas”, disse, em agosto, em teleconferência, o vice-presidente comercial, Wlamir dos Anjos.
“Produtos como chocolate, sucos e creme de leite passaram por mudanças [na composição] para manter os preços estáveis, o que acaba, de certa forma, diminuindo um pouco a qualidade”, disse.
É possível identificar mudanças porque a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ligada ao Ministério da Saúde, determina normas sobre a rotulagem das alterações na composição dos alimentos embalados, o que permite identificar o antes e o depois (resolução nº 727, de 1º de julho de 2022).
Pelas normas, companhias são obrigadas a estampar, na frente da embalagem, a informação “nova receita”, “nova fórmula” ou “nova composição” quando ingredientes sofrem qualquer alteração, de item ou de relevância na composição.
Na semana passada, em visitas às redes Carrefour Hipermercado e Pão de Açúcar, na zona oeste de São Paulo, entre os casos verificados pelo Valor está o iogurte grego da marca Itambé (100 gramas), do grupo francês Lactalis. Nele, morango em cubos foram substituídos por polpa, e saiu o creme de leite para a entrada de um concentrado proteico de leite com espessante gelatina, que ajuda a engrossar o produto. Procurada, a Lactalis não se manifestou sobre o tema.
No ano, de janeiro a junho, iogurte e bebidas lácteas sobem de preço acima da inflação, medida pelo índice do IPCA/IBGE – a categoria avançou 4,2% para um índice geral de 2,99% frente a 2024.
Nos biscoitos “Choco Biscuit” da fabricante nacional Bauducco, o chocolate ao leite deu lugar à cobertura sabor chocolate ao leite, o que parece um detalhe de ingredientes, mas, no fim das contas, se antes o leite integral, pasta e manteiga de cacau tinham peso maior do que a gordura vegetal no produto – apenas o quarto ingrediente por ordem decrescente -, no novo conteúdo, isso mudou.
A gordura aparece com o segundo maior peso, com maior percentual do que o cacau (que passou a ser em pó) e do que o leite.
Paralelo à troca, o reajuste de preço da marca nessa categoria superou a inflação de 2025, segundo o diretor comercial de uma cadeia de supermercados de São Paulo. “Houve um efeito mix de relançamentos que elevou os preços, mas teve repasses por causa da desvalorização cambial e da alta de commodities”, disse.
“Há embalagens propositadamente caóticas, mas se funcionam, ninguém quer mexer”
— Leopoldo Leal
A empresa alega encarecimento do cacau para justificar a mudança. Na safra de 2023/ 2024, o mercado sentiu a escassez global e os preços recordes após a queda de produção na Costa do Marfim e Gana, reflexo de problemas climáticos. Para a safra 2025/2026, porém, o cenário é mais animador – embora ainda seja uma recuperação lenta na oferta do insumo. Mas a formulação não voltou a mudar até o momento, mesmo com a menor pressão.
Em julho, a Organização Internacional do Cacau (ICCO na sigla inglês) previu uma alta de 15% na safra 2024/25 no Brasil.
Pelo indicador do IPCA/IBGE, enquanto a inflação em panificados, até junho, atinge 4%, em biscoitos sobe mais, 5,35%. Alimentos em geral até tiveram recuo na inflação em 2025, mas houve queda no volume (veja tabela acima).
Em nota, o Grupo Pandurata, dono da Bauducco, disse que, num contexto de pressão inflacionária, especialmente nos custos do cacau, a empresa buscou garantir o acesso a seu portfólio.
Ainda informou que, como alternativa para equilibrar “qualidade e acessibilidade”, ajustou a receita do produto. Mas faz a ressalva de que um estudo encomendado mostrou que, considerando todas as métricas avaliadas, a receita atingiu 99% “de performance comparativa à receita original entre os consumidores habituais do produto”. Ainda diz que respeitou as regras de comunicação na embalagem.
Outro produto com mudança na composição neste ano, e com reajuste de preços acima da inflação acumulada, é o “Passatempo Chocolate”, da fabricante suíça Nestlé, que mudou para “Passatempo Sabor Chocolate”. Houve redução na quantidade de chocolate e aumento no volume de gordura vegetal por grama, segundo comparação dos ingredientes relatados nas diferentes embalagens.
“Tiraram o chocolate do recheio e aumentaram a quantidade de gordura vegetal para garantir a cremosidade. O ‘sabor’ chocolate é, basicamente, por causa do aroma”, diz a engenheira Giovanna Pisanelli, mestre e doutora em Ciência de Alimentos, numa publicação na plataforma “Desrotulando”.
Com isso, foi elevado o volume de gordura saturada (de 4,2 gramas a cada 100 gramas para 5,8 gramas, alta de 38%) por produto – cuja parte frontal da embalagem exibe a expressão “sabor da infância”, num apelo nostálgico do biscoito que foi sucesso de vendas duas décadas atrás.
“Tiraram o chocolate do recheio do biscoito e aumentaram a quantidade de gordura vegetal”
— Giovanna Pisanelli
Em material de divulgação do lançamento em março, a marca fala que, “inspirada na receita dos anos 2000, a novidade busca resgatar o sabor que marcou a infância de milhares de brasileiros”. Além disso, foi retirado o leite em pó e o cálcio, e colocado soro de leite. Por conta disso, na nova embalagem deste ano, não aparece mais a expressão “fonte de cálcio” após as alterações.
Ao mesmo tempo, a área comercial da empresa repassou, no primeiro trimestre, nova tabela para certos itens de mercearia, inclusive biscoitos, alegando aumento no custo de matéria-prima, apurou Valor com duas redes médias de supermercados de São Paulo.
Procurada, a Nestlé diz que segue rigorosos critérios de qualidade e que os itens passam por avaliação de consumidores para assegurar índices de aprovação para sabor e textura. E que todas as informações de ingredientes seguem no rótulo para que sejam feitas escolhas conscientes. Também afirma que, segundo investimentos em inovação e pesquisa, a antiga receita do Passatempo resgata a memória afetiva, o que motivou a atualização da fórmula.
Na visão de Leopoldo Leal, professor do curso de Design da ESPM (ex-executivo da Interbrand e ex-Futurebrand), uma verificação nas prateleiras mostra que parcela relevante dos produtos foco da estratégia do “nova receita” hoje são bolachas, chocolates e doces, muitos deles com alto teor de açúcar.
“Alguns são itens ultraprocessados e de consumo rápido, que ‘matam’ a fome, e muitas vezes, o consumidor não consegue parar e ler as informações e comparar as lista de ingredientes”, diz. “E há embalagens que são, propositadamente, caóticas, com letras super esticadas, coloridas, e por conservadorismo, se está funcionando, ninguém quer alterar o formato”.
Também não é muito fácil saber o que aconteceu com a receita do produto na hora da compra. Isso porque o consumidor precisa ligar no serviço de atendimento ao cliente (SAC), ou acessar um QR Code na embalagem, para descobrir, se a empresa disponibilizar o código, algo que ela não é obrigada, segundo a resolução.
No entendimento do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), não há efeitos das mudanças na qualidade dos produtos. O órgão afirma, em nota, que todos os produtos regulamentados devem atender aos respectivos padrões estabelecidos em regulamentos técnicos específicos. “Portanto, não se pode falar em redução de qualidade, uma vez que os padrões definidos devem ser seguidos”.
No levantamento, ainda há outro movimento identificado entre certas marcas de consumo.
Existem indústrias que não têm seguido todas as normas determinadas na resolução nº 727, de 2022, que dispõe sobre as formas corretas de se expor, na embalagem, os dizeres “nova receita”, “nova fórmula” ou “nova composição”.
Isso precisa ser informado quando a lista de ingredientes tem qualquer alteração, ou se mudam dados da tabela nutricional.
Essa resolução é válida para os produtos de origem animal e relacionados a alergênicos, que são de competência da Anvisa.
Há ainda a instrução normativa de setembro de 2020, que também define essas regras para itens de higiene e limpeza.