A reforma tributária em curso no Brasil, especialmente com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, reacendeu debates estruturantes sobre o modelo de incentivos fiscais adotado no país. Em meio às discussões sobre o novo sistema de tributação sobre o consumo e os regimes específicos e diferenciados previstos para determinados setores, os defensivos agrícolas emergem como um dos principais pontos de tensão entre a política fiscal e os direitos fundamentais ambientais e à saúde.
É nesse contexto que tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7755, proposta pelo Partido Verde, que desafia a validade constitucional das cláusulas primeira e terceira do Convênio ICMS 100/1997 do CONFAZ, bem como o art. 9º, §1º, XI, da EC 132/2023, que autoriza tratamento tributário favorecido aos insumos agropecuários. A controvérsia não gira em torno do uso em si de agrotóxicos, mas sim da legitimidade da desoneração tributária conferida a produtos com reconhecido potencial nocivo à saúde e ao meio ambiente.
O argumento central da ADI 7755 sustenta que a concessão de benefícios fiscais a essas substâncias viola o princípio da seletividade tributária, além dos direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal) e à saúde (art. 196 da CF).
Até o momento, alguns votos já proferidos pelos Ministros refletem um cenário de divisão substancial no STF. O Ministro Edson Fachin, relator do caso, votou pela procedência integral da ação, reconhecendo que as normas questionadas violam frontalmente os princípios constitucionais ambientais, sanitários e fiscais. Para Fachin, a seletividade tributária deve observar não apenas a essencialidade econômica dos produtos, mas também seu impacto ambiental e social, especialmente quando o benefício fiscal desincentiva práticas mais sustentáveis[1]. A Ministra Cármen Lúcia acompanhou integralmente o relator, reforçando a importância da responsabilidade intergeracional do Estado.
Na divergência, o Ministro Gilmar Mendes apresentou uma posição contrária, sustentando que a desoneração se justifica por razões econômicas e de segurança alimentar. Em seu entendimento, os defensivos agrícolas são insumos essenciais para a produtividade no contexto brasileiro, dadas as características tropicais do país, e a sua tributação diferenciada não caracteriza, por si, violação aos princípios constitucionais[2].
Os Ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Dias Toffoli acompanharam essa linha argumentativa. Em posição intermediária, o Ministro André Mendonça defendeu a tese de um “processo de inconstitucionalização”, sem declaração imediata de nulidade, mas com determinação de que os entes federativos revisem suas políticas fiscais em até 90 dias, considerando aspectos como o grau de toxicidade dos insumos, alternativas tecnológicas e o custo fiscal da renúncia[3]. O voto foi seguido pelo Ministro Flávio Dino.
A discussão atinge seu ponto mais sensível quando confronta, de um lado, os compromissos constitucionais com a sustentabilidade, a proteção à saúde pública e a função socioambiental da tributação, e de outro, a lógica econômica da cadeia agroindustrial e a necessidade de garantir a competitividade do agronegócio brasileiro no mercado internacional.
Estima-se que os defensivos agrícolas respondam por parcela significativa do custo de produção rural, especialmente entre pequenos e médios produtores, os quais possuem menor poder de barganha na aquisição desses insumos. Além disso, o aumento de custos decorrente da perda de incentivos pode pressionar os preços dos alimentos, afetando consumidores e ampliando tensões inflacionárias.
Do ponto de vista jurídico, o caso expõe os limites da atuação do Poder Judiciário na definição de políticas públicas tributárias. Parte da Corte defende que a desoneração integra o espaço de discricionariedade política dos entes tributantes, cuja interferência judicial só se justificaria diante de manifesta irrazoabilidade ou violação direta e inequívoca à Constituição. Outros ministros, no entanto, entendem que a extrafiscalidade tributária não está imune ao controle de constitucionalidade, sobretudo quando a política fiscal colide com direitos fundamentais. O STF, em julgamentos anteriores, já consagrou que o princípio da proporcionalidade pode ser utilizado como critério para aferição da validade de normas tributárias extrafiscais, inclusive no contexto ambiental[4].
O desfecho da ADI 7755 poderá também impactar a própria aplicação da EC 132/2023, que, ao prever a possibilidade de redução de alíquotas para insumos agropecuários e aquícolas, insere no texto constitucional um comando normativo que será reinterpretado à luz do julgamento. Caso prevaleça a tese da inconstitucionalidade dos incentivos fiscais atuais, poderá haver reavaliação do alcance dessa previsão, inclusive sob o prisma de um controle de constitucionalidade superveniente.
O debate sobre incentivos fiscais vai muito além de seu impacto na arrecadação. Trata-se, no fundo, de definir os contornos do desenvolvimento nacional no século XXI. A opção por manter ou reconfigurar os benefícios fiscais aos defensivos agrícolas exigirá do Supremo uma decisão pautada por evidências, equilíbrio institucional e responsabilidade com o futuro.
Autores:
*Leandro Lucon é especialista da área tributária contenciosa e sócio do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
*Isadora Nogueira Barbar Buffolo é líder da área tributária contenciosa do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados
*Isabella Finarde Souza Lima é trainee da área tributária do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
[1]Voto do Ministro Edson Fachin, ADI 5553/DF, e posteriormente reiterado na ADI 7755.
[2]Voto do Ministro Gilmar Mendes, ADI 7755/DF, sessão virtual de junho de 2023.
[3]Voto-vista do Ministro André Mendonça, ADI 7755/DF, sessão virtual de fevereiro de 2024.
[4]⁴ Cf. ADI 3232/TO, Rel. Min. Cezar Peluso, e ADI 2501, Rel. Min. Joaquim Barbosa.