Matriz limpa é diferencial competitivo que já começa a se refletir nas cadeias globais, diz Shari Friedman

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Em meio a guerras, tensões comerciais e disputas geopolíticas que desviam atenção e recursos dos governos, há um risco de a agenda climática ser deixada em segundo plano. Para Shari Friedman, diretora de Clima e Sustentabilidade da consultoria Eurasia Group, seria um erro estratégico considerar a sustentabilidade como algo periférico.

“É verdade que algumas pressões geopolíticas acabaram rebaixando a sustentabilidade alguns degraus na lista de prioridades globais. Mas seria um erro ignorá-la como fator econômico. Há movimentos em andamento que exigem atenção”, afirma em entrevista ao Prática ESG, do Valor Econômico.

Ela cita regulamentações emergentes, como o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (CBAM), a lei europeia contra o desmatamento (EUDR) e novos padrões globais de reporte tanto na União Europeia quanto o modelo de IFRS, que passará a valer para empresas de capital aberto no Brasil a partir de 2027 e alinha divulgações financeiras e de riscos climáticos. Para a executiva, esse avanço do arcabouço regulatório está moldando a forma como empresas competem, acessam mercados e atraem investimentos.

Com mais de 25 anos de experiência em negociações climáticas, finanças sustentáveis e políticas públicas, Shari acompanha de perto a interseção entre clima, economia e geopolítica. Ela participou, no dia 19 de setembro, do Brazilian Climate Summit em Nova York, evento anual realizado na Universidade de Columbia e organizado pelo Brazilian Climate Institute.

Em entrevista, ela explica como governos e empresas podem equilibrar incentivos e regulações, avalia o papel dos títulos verdes no financiamento de setores estratégicos e detalha as oportunidades para países com vantagens naturais, como o Brasil. “A matriz energética limpa é um diferencial competitivo que já começa a se refletir nas cadeias globais”, destaca.

Às vésperas da COP30, que será sediada em Belém, Friedman acredita que o Brasil pode se tornar líder não apenas como potência ambiental, mas também como laboratório de soluções inovadoras em agricultura, florestas e finanças climáticas. Para ela, o desafio será transformar esses ativos em políticas consistentes, capazes de atrair capital privado e consolidar novas cadeias de valor. “Se o país conseguir deixar como legado avanços práticos em florestas, agricultura e financiamento climático, o impacto será global e duradouro”, afirma. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Atualmente, vemos guerras, tarifas e tensões geopolíticas ocupando a atenção e os recursos dos governos. Você acredita que a agenda climática perdeu espaço diante desses fatores?

Shari Friedman: É verdade que algumas pressões geopolíticas acabaram rebaixando a sustentabilidade alguns degraus na lista de prioridades globais. Mas seria um erro ignorá-la como fator econômico. Há movimentos em andamento que exigem atenção: medidas comerciais relacionadas ao carbono, como o CBAM [regra que impõe preço sobre as emissões de carbono incorporadas em certos produtos importados], a regulação europeia contra desmatamento (EUDR), frameworks como o International Sustainability Standards Board, além de normas da União Europeia, como a CSDDD. Além disso, os impactos sociais das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade continuam presentes e tendem a se intensificar. E novas tecnologias, como inteligência artificial e sensoriamento remoto, estão gerando mais dados, o que aumenta a transparência para consumidores e reguladores. Empresas precisam estar preparadas para isso.

Valor: Qual é o papel dos governos e do setor privado nessa agenda?

Friedman: As empresas têm a responsabilidade de não causar danos graves, mesmo quando a lei permitiria certas práticas. Mas, para elevar o padrão e provocar mudanças em escala, é preciso que os governos definam regras claras. Isso vale para questões sociais, para o clima e para a biodiversidade. Sempre haverá líderes no setor privado que vão além do exigido, mas o avanço amplo só ocorre quando há política pública estabelecida.

Valor: Pode citar exemplos de cooperação entre setor público e privado?

Friedman: Um ótimo exemplo são os green bonds no Brasil. O governo definiu padrões claros, reconhecidos internacionalmente, e criou políticas que geram demanda por negócios verdes, como o mercado de carbono e programas de biocombustíveis. Isso cria a base para que o setor privado possa emitir títulos verdes com credibilidade e escala.

Valor: Os green bonds são uma solução central para atrair recursos ao Brasil?

Friedman: O atrativo dos green bonds e blue bonds é que o mercado financeiro já entende essa estrutura. Isso facilita a captação de investidores. Produtos mais complexos, como sustainability-linked bonds, têm menos adesão justamente por serem mais difíceis de monitorar. Outro campo promissor é o venture capital e private equity em setores verdes. Mas para acelerar investimentos em tecnologias mais arriscadas, é essencial o uso de instrumentos de finanças concessionais — aportes que reduzem riscos e atraem capital privado. Bancos multilaterais têm sido muito eficazes em estruturar esse tipo de mecanismo.

Valor: E o blended finance pode ser uma alternativa?

Friedman: Sim, mas não é a solução principal. O volume global de finanças concessionais é limitado. Elas ajudam a “empurrar” setores promissores até a viabilidade comercial, mas não devem sustentar negócios que sempre dependerão de subsídio. Os principais motores de mercado serão regulações, precificação de carbono, incentivos fiscais e regras de comércio. O exemplo das renováveis é claro: concessional finance ajudou, mas foram as regulações e incentivos fiscais que consolidaram o setor.

Valor: O que funciona melhor: incentivos (carrots) ou penalidades (sticks)?

Friedman: É preciso equilibrar os dois. Só penalidades tornam as empresas menos competitivas internacionalmente. Só incentivos ficam caros demais. A União Europeia, por exemplo, está ajustando suas regras para não sobrecarregar empresas e, ao mesmo tempo, manter eficiência regulatória. Um exemplo positivo é o mercado de carbono europeu: parte da receita das taxas volta para financiar eficiência nas próprias empresas, combinando o incentivo com a obrigação.

Valor: O Brasil tem vantagem competitiva por ter matriz energética limpa?

Friedman: Sim. Esse diferencial será cada vez mais importante. A União Europeia já iniciou a fase contábil do CBAM (Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira), com taxas a partir de 2026. O Reino Unido deve seguir em 2027 e outros países estudam medidas semelhantes. Assim, a matriz limpa e um mercado de carbono doméstico dão ao Brasil vantagem já no curto prazo, especialmente para setores como aço e alumínio.

Valor: E em quais setores o Brasil pode ter papel de liderança global?

Friedman: O primeiro destaque são os biocombustíveis, principalmente no transporte aéreo e marítimo. O Brasil pode ser protagonista em combustíveis sustentáveis de aviação, desde que cumpra padrões internacionais e garanta rastreabilidade em relação ao desmatamento. Outro campo é a agricultura. O desenho do mercado de carbono brasileiro permite que o setor agrícola compre créditos, criando incentivo para maior sofisticação na contabilidade de emissões. Isso pode posicionar o agronegócio nacional como protagonista na descarbonização global — se houver avanço no combate ao desmatamento.

Valor: Como líderes empresariais podem lidar com tantas incertezas?

Friedman: A chave é trabalhar com cenários múltiplos. É preciso identificar fatores que podem alterar os rumos — políticos, fiscais, geopolíticos e comerciais — e estar preparado para reagir a cada um deles. Por exemplo, a transição energética é difícil de prever apenas com base nos planos oficiais. São muitos elementos em jogo, e as empresas precisam revisitar constantemente suas análises. Nós desenvolvemos um “painel de transição energética” que monitora diferentes fatores país a país justamente para apoiar essa tomada de decisão.

Valor: Quais tendências de comércio estão mais ligadas à sustentabilidade?

Friedman: Um grande desafio para empresas internacionais é conciliar regulações ambientais rígidas na União Europeia com pressões políticas internas nos Estados Unidos contra parte dessas regras. É um jogo delicado para multinacionais que captam recursos nos dois mercados. No caso do Brasil, há muita atenção ao EUDR (regulação europeia contra desmatamento), que exige comprovação de que commodities não têm desmatamento em sua cadeia de valor. Isso impacta diretamente produtos brasileiros, já que a Europa é um dos maiores compradores.

Valor: Qual deve ser o papel do Brasil na COP30?

Friedman: Cada COP reflete as prioridades do país-sede. No caso do Brasil, apesar de ser grande produtor de petróleo, sua economia é muito mais diversificada. O país posicionou esta conferência em torno de florestas, agricultura e biodiversidade. Um exemplo é a proposta do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que busca captar US$ 125 bilhões para pagar países pela preservação de florestas, combinando recursos soberanos e privados. É um modelo inovador de financiamento climático. Além disso, a forma como o Brasil estruturou seu mercado de carbono — permitindo que a agricultura participe de forma indireta — pode ser um legado importante ao integrar o setor agrícola aos mercados globais de carbono.

Valor: O que te dá mais otimismo em relação ao papel do Brasil na agenda climática?

Friedman: O que mais me anima é a tentativa de combinar negociações internacionais com soluções práticas envolvendo o setor privado. As negociações da ONU são lentas, mas já fizeram diferença: em 2015, o mundo caminhava para um aquecimento de 3,7°C a 4,8°C. Hoje, está em 2,7°C. Ainda é insuficiente, mas mostra que a ação contínua funciona. Se o Brasil conseguir deixar como legado um avanço prático em temas como florestas, agricultura e financiamento climático, a COP30 terá impacto global duradouro.

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