
Os projetos ferroviários no segmento de transporte de passageiros têm gerado mais negócios no Brasil do que o setor de cargas.
Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer), conversou com a BNamericas sobre o contexto atual, suas projeções e também as preocupações com a concorrência chinesa no setor.
BNamericas: Quais regiões e iniciativas devem concentrar os avanços mais relevantes em projetos ferroviários no Brasil?
Abate: Em termos de projetos de transporte de passageiros, temos alguns estados ganhando tração, mas em São Paulo há o vigor populacional que continuará gerando demanda esse tipo de projeto.
A atuação do governo estadual é muito forte nesse sentido. Já foi lançado o programa SP Nos Trilhos, que prevê mais de 800km de ferrovias.
Temos grande expectativa com o programa SP Nos Trilhos, pois ele movimenta a construção e a participação da indústria brasileira na oferta de trens.
Mas faço um alerta, só espero que não haja pregão eletrônico para a venda de trens, pois, diante do poderio chinês, isso inviabiliza a participação das empresas com operações no Brasil.
Por isso, uma sugestão seria evitar o pregão eletrônico e adotar o modelo com entrega de propostas físicas, na B3 [operadora da bolsa de valores do Brasil que organiza os maiores leilões], com abertura pública dos envelopes.
Se houver mais de um proponente, pode-se realizar o chamado leilão viva voz, permitindo novas ofertas de forma transparente.
BNamericas: Por que a Abifer considera o pregão eletrônico inadequado para as licitações do setor ferroviário?
Abate: O pregão eletrônico é uma modalidade pertinente, mas no caso da concorrência chinesa as nossas associadas ficam em desvantagem, porque as empresas chinesas recebem apoio estatal e não têm limites competitivos.
Portanto, não se trata de uma restrição à modalidade do leilão em si, mas à sua aplicação em disputas com players chineses.
Quando há propostas lacradas em envelopes, como acontece em leilões presenciais, tudo é verificado por uma banca de avaliação, que realiza abertura pública e definitiva. Caso a diferença entre propostas iniciais seja inferior a um determinado percentual estabelecido em edital, abre-se um leilão viva voz para ofertas finais.
Esse modelo é mais transparente. Já no pregão eletrônico há riscos – inclusive de participantes não identificados aparecerem distorcendo o processo.
Na visão da Abifer, o pregão eletrônico não deve ser utilizado em encomendas relevantes, especialmente em contratos de bilhões de reais. Licitações desse porte devem ocorrer de forma presencial e controlada.
BNamericas: Qual é a perspectiva para os projetos ferroviários de cargas e o impacto esperado sobre a indústria nacional?
Abate: No setor de cargas, acreditamos que haverá um novo ciclo de crescimento.
De fato, quatro renovações antecipadas de [contratos de] concessões já ocorreram, mas os resultados para a indústria ainda não corresponderam às expectativas. Os acordos previam revitalização de contornos ferroviários, especialmente na malha paulista, com duplicações, mas os reflexos em encomendas ainda são limitados.
A demanda por vagões e locomotivas caiu de 4.900 unidades por ano entre 2015 e 2019 para cerca de 1.000 em anos posteriores. Só recentemente voltamos a crescer para 1.600 por ano. Mas mesmo com perspectiva de aumento até 2026, ainda não há encomendas suficientes pra reduzir o elevado nível de ociosidade da indústria.
Mas mantemos uma expectativa otimista. A renovação da concessão da Ferrovia Centro-Atlântica(FCA), administrada pela VLI Logística, por exemplo, deve gerar investimentos de R$30 bilhões (bi) (US$5.6bi) em 30 anos, mas esperamos que isso se traduza em pedidos para a indústria nacional no curto prazo.
No transporte de passageiros, além dos fornecimentos da Alstom para as Linhas 7 e 8 [em São Paulo], há exportações de empresas produzindo no Brasil para Taipei (Taiwan), Bucareste (Romênia) e Santiago do Chile.
A indústria de passageiros é, portanto, nesse momento, mais ativa do que a de cargas.
BNamericas: Como os atrasos nas renovações e também lançamento de novas concessões de ferrovias de carga afetam o ritmo de encomendas e investimentos do setor?
Abate: Sobre o atraso das renovações e as encomendas, entendemos que há uma frota de cerca de 150 mil vagões no Brasil, sendo 120 mil operacionais, com necessidade de renovação gradual.
Trabalhamos com o Ministério dos Transportes e a ANTT para estabelecer critérios técnicos de vida útil dos vagões. Por exemplo, estabelecendo para vagões tanque uma vida útil máxima de 50 anos e os vagões de demais tipos com inspeções a cada cinco anos, com limite de 65 anos mediante reparos estruturais.
Em março, nós fizemos um levantamento dos projetos ferroviários de cargas em andamento: dos 30 mil km de malha ferroviária que temos, apenas 10–12 mil km são utilizados intensamente por Vale, VLI e Rumo. Há um déficit de cerca de 18 mil km, e propomos recuperar 11 mil km, reduzindo a escassez ferroviária.
A [empresa estatal] Infra SA projeta que até 2035 as ferrovias representem 40% da matriz de transporte de cargas no Brasil, frente aos atuais 20%. Isso trará maior equilíbrio entre os modais rodoviário e ferroviário.
BNamericas: Quais novos projetos de ferrovias de carga a Abifer considera prioritários para destravar o setor?
Abate: A Ferrogrão ainda está sob julgamento no STF. Se o impasse fosse resolvido há anos como era esperado, metade da ferrovia já estaria pronta. A ferrovia atenderá o estado do Mato Grosso, grande produtor de grão do Brasil.
A FICO, ligando Água Boa a Mara Rosa, deve integrar-se à FIOL, conectando o Centro-Oeste brasileiro ao Porto de Ilhéus. A FIOL 1 já foi executada, mas a Bamin enfrenta dificuldades financeiras; espera-se que outra empresa assuma o projeto em algum momento. A FIOL 2, entre Caetité e Barreiras, já está em execução.
Por fim, o Porto de Chancay, no Peru, vem sendo estudado como destino de uma ligação ferroviária oceânica partindo de Santos ou Ilhéus. Este mês receberemos técnicos peruanos para discutir a viabilidade do corredor Brasil–Peru–Pacífico.
No geral, acreditamos que em algum momento setor ferroviário brasileiro poderá seguir caminho semelhante ao das rodovias, com investidores mais diversificados, como fundos de investimento ativos, e com o governo estimulando a expansão da malha nacional.