
Enquanto Volkswagen, GM, Toyota e Stellantis travavam uma batalha pública contra os incentivos fiscais renovados pela Reforma Tributária em 2023, as montadoras chinesas ‘faziam contas’ nos bastidores. Resultado? Entraram no mercado brasileiro por portas que muitos consideravam já fechadas, montando seus carros com menos impostos e aproveitando o que restava de políticas industriais do passado.
A disputa começou com a renovação dos benefícios fiscais para produção de veículos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, incluída no texto da Reforma às vésperas da votação no Senado. O artigo, que estendia até 2032 os incentivos do IPI para carros produzidos fora do eixo Sul-Sudeste, beneficiava diretamente a Stellantis, dona da fábrica em Goiana (PE), e inflamou concorrentes.
Chevrolet, Toyota e Volkswagen publicaram cartas abertas, acusando o governo de incoerência e ameaçando rever investimentos no Brasil. “É uma concorrência desleal”, argumentam. Mas enquanto os titãs brigavam em Brasília, outro grupo ensaiava jogadas em silêncio: as montadoras chinesas.
BYD foi pioneira
Tudo começou com a BYD. Depois de analisar diversos terrenos e fábricas ociosas disponíveis no país, a marca resolveu aproveitar os incentivos fiscais destinados às montadoras do Norte, Nordeste e Centro-Oeste negociando a antiga fábrica da Ford, na Bahia.
À época, o secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Mdic, Uallace Moreira, explicou o processo. “[A BYD] entrou com pedido de habilitação, que está em avaliação. Se uma montadora for criar uma fábrica, não pode porque o benefício foi concedido no passado. Hoje, só vale para os que já têm. Se a Stellantis [montadora da Fiat, Jeep e outras] fechar e vier uma empresa para comprar, também vai se beneficiar.” Ou seja, o caminho se tornou aproveitar uma fábrica existente.
Nesse período, a chinesa ainda era vista pelas tradicionais como um elemento “café com leite”, e todas viram sentido em os benefícios continuarem valendo para a produção dos carros eletrificados, já que o temor maior era a vantagem competitiva da Stellantis. No fim, os incentivos foram mantidos para a produção de todos os tipos de propulsão, e a BYD começou a incomodar.
Neste ano, a marca chinesa entrou com um pedido polêmico na Câmara de Comércio Exterior (Camex): queria importar veículos elétricos em kits desmontados (CKD e SKD), pagando menos imposto. Hoje, esses kits pagam alíquotas entre 10% e 28%, mas até 2028 tudo deveria subir para 35%. A BYD pleiteava uma redução drástica: apenas 5% no CKD e 10% no SKD. Argumentava que isso permitiria viabilizar a operação inicial até que a linha de produção nacional estivesse completa.
O pedido acendeu o alerta vermelho nas grandes montadoras. Volkswagen, GM, Stellantis e Toyota deixaram suas desavenças de lado e assinaram uma carta conjunta ao presidente Lula, acusando a operação de “privilégio” e exigindo respeito ao programa Mover – criado justamente para fortalecer a produção nacional.
A resposta do governo veio no fim de julho. O Comitê Executivo de Gestão da Camex decidiu antecipar para janeiro de 2027 a cobrança integral de 35% de imposto de importação para veículos eletrificados – montados ou desmontados. O prazo anterior previa esse aumento só para meados de 2028. Mas, em uma concessão pontual à BYD, o colegiado também aprovou cotas temporárias de importação com tarifa zero para kits CKD e SKD, válidas por seis meses e com limite de até US$ 463 milhões.
Chinesas agiram rápido
A agilidade das marcas chinesas é real, seja no lançamento de novos modelos, seja no tempo de implantação de uma operação fabril. Com uma estrutura global mais leve e flexível, conseguem se adaptar às brechas da legislação e se instalar com rapidez. E foi isso que fizeram:
A BYD, na Bahia, já iniciou montagem de veículos em Camaçari, aproveitando o vácuo deixado pela Ford e usando kits desmontados para reduzir custos.
A Leapmotor, recém-integrada ao grupo Stellantis, vai produzir em Pernambuco. A aliança transforma uma marca chinesa em “nacionalizada”, e permite abatimentos fiscais.
A HPE, responsável pela produção da Mitsubishi em Catalão (GO), já afirmou que negocia com novas marcas chinesas para usar a estrutura existente.
A GAC, outra gigante da China, declarou publicamente que quer produzir em Goiás, provavelmente em busca de incentivos regionais semelhantes aos da concorrência.
A Caoa, com sua planta em Anápolis (GO), pode transformar a fábrica em base para a produção da chinesa Changan, com quem firmou parceria neste ano.
Até a Chevrolet se rendeu à tendência, anunciando a produção do seu carro chinês, o Spark, na fábrica da Comexport, no Ceará, onde eram montadoras os veículos da Troller.
Em comum, todas essas marcas seguem uma cartilha: importar kits desmontados, montar localmente para ganhar vantagem competitiva e usar estruturas industriais já existentes ou subutilizadas, o que reduz o investimento inicial, acelera a operação e ainda garante os benefícios fiscais.
Por que as chinesas são tão rápidas?
A resposta está em três pilares. A primeira é que as chinesas já operam em dezenas de países com produtos prontos para adaptação a um custo baixo quando comparado com as montadoras tradicionais, por causa da escala gigantesca e até mesmo dos incentivos do governo chinês. Por isso, para começar a vender um carro no Brasil, mas tirá-lo da “prateleira” e trazer para cá usando uma infraestrutura logística também muito grande.
Além disso, ao trazer veículos desmontados e montá-los localmente, como a maioria das marcas chinesas planejam fazer, a estrutura fabril é absurdamente menor. Para se ter uma ideia, a BYD investiu R$ 5,5 bilhões para construir sua fábrica na Bahia, valor próximo ao que montadoras “tradicionais” gastam para começar a produzir completamente apenas um novo modelo.
Outra questão é que a China está com excesso de produção de carros e barreiras fiscais nos maiores mercados do mundo. Ela precisa escoar a produção a todo custo, isso torna a decisão de investimento muito mais ágil, então conseguem aproveitar janelas regulatórias antes que se fechem.
Enquanto isso, as montadoras tradicionais estão presas a estruturas mais robustas: grandes redes de fornecedores, sindicatos locais, cadeias de produção complexas, linhas de produção travadas ao redor do mundo e um modelo de negócios que depende de previsibilidade. Quando o cenário muda rápido, como agora, elas demoram mais para reagir.
Governo no meio do tiroteio
Para o governo, o desafio é gigante: como proteger a indústria nacional sem perder investimentos estratégicos? Ao mesmo tempo em que deseja fortalecer marcas instaladas, não pode ignorar o apelo das chinesas, que geram empregos em regiões carentes e promovem a eletrificação da frota.
Há também uma questão geopolítica: o Brasil quer ser protagonista na transição para uma mobilidade mais verde – e os elétricos chineses, mais acessíveis, ajudam a democratizar o acesso à tecnologia.
Mas há riscos. Se a produção nacional virar apenas “montagem final” de carros importados, como acrescentar pneus e vidros, perde-se capacidade tecnológica, empregos qualificados e competitividade industrial de verdade. Além de criar uma dependência enorme de uma só fonte. Afinal, se a decisão de instalação pode ser rápida, a retirada do investimento, caso o país não atenda às expectativas, também.