
O governo brasileiro divulgou um plano para leiloar contratos de concessão de rodovias e ferrovias de carga ao longo de 2026, que podem gerar investimentos futuros de cerca de R$800 bilhões (US$150 bilhões).
A BNamericas conversou com dois especialistas jurídicos do setor de infraestrutura – Alberto Sogayar, sócio do escritório SA Advogados, e Leticia Queiroz, sócia-diretora do escritório Queiroz Maluf Reis – sobre as expectativas associadas a essa agenda.
BNamericas: Embora no setor de rodovias haja avanços claros nos contratos de concessão, o mesmo não pode ser dito em relação às ferrovias de carga. Quais são os principais riscos, desafios associados aos contratos de concessão ferroviária que dificultam o avanço desse plano na mesma velocidade que vemos em outros segmentos?
Sogayar: O setor ferroviário ainda convive com um conjunto de riscos estruturais que tornam o apetite privado mais limitado.
O primeiro deles é a incerteza de demanda, diretamente associada à dinâmica do agronegócio e de commodities minerais, altamente sensíveis a ciclos internacionais.
O segundo risco decorre da dependência de longas cadeias logísticas, que exigem integração entre portos, operadores de terminais, pátios e operadores de transbordo. Outro elemento crítico é a incerteza regulatória relacionada à utilização da infraestrutura por terceiros, especialmente no tocante ao direito de passagem, operação integrada e tarifa de acesso.
A ausência de mecanismos robustos e operacionais para resolver conflitos entre concessionárias limita a confiança em modelos de expansão. Também pesa negativamente o alto investimento inicial, capex elevado e concentrado, com riscos de engenharia associados a obras lineares extensas, muitas vezes em áreas remotas, com desafios ambientais, fundiários e socioeconômicos relevantes.
Por fim, o setor ferroviário ainda não consolidou modelos de remuneração que conciliem estabilidade financeira com incentivos claros à eficiência, o que diminui o apetite competitivo quando comparado ao setor rodoviário, onde a curva de aprendizado recente é muito mais consistente.
Queiroz: O principal desafio do setor de ferrovias é o preço, o valor do investimento. No mundo todo é um investimento muito caro.
Comparando com contratos de rodovias temos, nesse primeiro caso, a construção da infraestrutura rodoviária, enquanto que, nas ferrovias, temos a infraestrutura ferroviária, a superestrutura ferroviária, que são os trilhos, o material rodante, pátios, estações, e há ainda a questão do contrato de transporte, um tópico que nas rodovias não está embutido.
A ferrovia é um negócio mais caro e mais complexo, que por vezes obriga vários participantes a se juntar, como operadores ferroviários com empresas de infraestrutura ferroviária.
Em síntese, o maior problema é a viabilidade econômica dos projetos. Em vários lugares do mundo, o governo coloca dinheiro nas ferrovias e, aqui no Brasil, a União, que é a principal detentora das ferrovias, tem dificuldade de fazer PPPs.
BNamericas: Você acredita que o governo conseguirá, de fato, leiloar oito contratos de ferrovias de cargas ao longo de 2026, como anunciado, considerando que também é um ano de eleição presidencial?
Sogayar: A realização de oito leilões ferroviários em 2026 é tecnicamente possível, mas politicamente improvável na velocidade e na escala anunciada.
A experiência brasileira demonstra que anos eleitorais concentram esforços governamentais em agendas de curto prazo, reduzem a coordenação interministerial e trazem, naturalmente, maior aversão ao risco regulatório por parte dos investidores.
Queiroz: Eu acredito que sim, porque são projetos que têm evoluído.
Tivemos renovações [renovações antecipadas de contratos de concessões existentes]; há uma série de projetos com estudo de viabilidade bem avançado e não há vedação para que esses leilões sejam realizados nesse período.
Além disso, essas licitações não geram problema de popularidade; pelo contrário, é o país desenvolvendo um modal de transporte bastante relevante.
BNamericas: Quais empresas tendem a se interessar por esses contratos de concessão no setor ferroviário?
Sogayar: O interesse tende a se concentrar em players com forte musculatura financeira, experiência prévia no setor e capacidade de operar corredores integrados.
Devem surgir como candidatos naturais os grandes grupos que já atuam no setor ferroviário, que já operam malhas relevantes e possuem sinergias de escala e capacidade técnica consolidada.
Andrade: Temos as empresas que mais atuam no setor, como a Vale, que atua no segmento também através da VLI, a Rumo e a MRS – empresas bastante participativas no segmento. E temos também participantes estrangeiros com forte atuação em ferrovias, chineses, russos, coreanos e japoneses. Há muito interesse em ferrovias também do lado estrangeiro.
BNamericas: Que tipos de estrutura de financiamento as empresas tendem a considerar para viabilizar os investimentos em ferrovias?
Sogayar: A estrutura de financiamento deverá ser híbrida, combinando instrumentos de longo prazo e mecanismos capazes de suavizar o impacto do capex inicial.
Entre as alternativas mais prováveis, cito o BNDES, com financiamentos de longo prazo indexados à TLP e debêntures incentivadas de infraestrutura, cada vez mais relevantes para atrair investidores institucionais buscando estabilidade e retorno atrelado à Selic, com benefícios fiscais importantes.
Queiroz: A estrutura de financiamento não é muito diferente do setor de rodovias. Elas [empresas] se valem, sim, do BNDES, mas também têm ganhado muita força as debêntures incentivadas, cada vez mais representativas.
BNamericas: Na área de rodovias, o pipeline extenso de contratos não pode gerar uma restrição à maior competição em cada concessão planejada para 2026?
Sogayar: Sim, existe esse risco.
O pipeline robusto de concessões rodoviárias, embora positivo para o país, pode gerar competição seletiva, concentrada apenas em grupos com maior capacidade financeira, força operacional e capacidade de absorver múltiplos projetos simultaneamente.
Além do aspecto financeiro, há a questão da capacidade de gestão. Cada concessão exige estrutura técnica, governança própria, capilaridade gerencial e atenção regulatória. Em cenários de pipeline muito denso, os operadores tendem a focar nos ativos mais estratégicos, deixando de competir em projetos secundários para não comprometer sua capacidade de entrega.
BNamericas: Há riscos de alguns projetos ferroviários a serem oferecidos terem concorrência com rodovias, por estarem em localidades semelhantes?
Queiroz: Nas ferrovias, que têm sido um segmento em que estamos nos aprofundando, de forma geral não temos esse problema de competição intermodal, que é a competição entre os modais rodoviário e ferroviário, também porque são perfis de carga diferentes.
Mas claro que uma rodovia próxima a uma ferrovia sempre pode reduzir o nível de carga, embora de forma geral serem perfis diferentes. Uma avaliação mais profunda necessitaria de uma verificação projeto a projeto.