Fato inédito na sessão de julgamento de 22/10 do Cade: pela primeira vez, a autoridade antitruste aplicou uma multa sem avaliar sua dosimetria ou a necessidade, conveniência e oportunidade de sua aplicação – mas por cumprimento estrito e direto de um comando judicial.
Isso mesmo: juízes determinaram ao Cade que usasse o seu poder sancionatório pelas razões e na forma que entenderam adequada. A atitude surpreendeu por ir na direção diametralmente oposta da literatura e da prática relativamente consolidada sobre deferência judicial a autoridades administrativas especializadas.
O resultado foi uma multa de R$ 128 milhões de reais à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em mais um episódio na longa disputa jurídica envolvendo a sua participação societária na Usiminas, concorrente no setor da siderurgia nacional.
Resumidamente: (i) em 2011 a CSN adquiriu em bolsa aproximadamente 15% do capital social da Usiminas; (ii) em 2014 a CSN assinou um acordo com o Cade por meio do qual se comprometia a reduzir sua participação na Usiminas a um patamar inferior ao de 5% num prazo de 5 anos; (iii) após ter sido prorrogado uma vez em 2019, o prazo para o desinvestimento foi alterado para indeterminado em 2022, por meio da assinatura de um termo aditivo ao acordo entre Cade e CSN.
Dentre as justificativas citadas pelo Cade para essa alteração estão a existência de outras obrigações no acordo que minimizariam o impacto concorrencial da manutenção da participação, além de mudanças no contexto geral do mercado que poderiam tornar a alienação da participação excessivamente onerosa.
Foi essa última alteração do acordo que ensejou a judicialização do tema pela Usiminas e que culminou com a aplicação da multa que aqui se comenta. Como os casos tramitam em sigilo, não é possível ter acesso à integra das decisões judiciais. Mas há informações públicas disponíveis que permitem alguns questionamentos.
O controle judicial da legalidade do ato administrativo é, nos termos da própria definição, uma análise da aderência da decisão administrativa à lei. Se a lei autoriza o Cade a celebrar acordos, e se a definição dos termos desses acordos – que estabelecem obrigações desenhadas para enfrentar problemas concorrenciais identificados num caso concreto – diz claramente respeito ao mérito do ato administrativo, caberia ao judiciário se substituir ao Cade e analisar a pertinência de alterações dos seus termos?
Não é ao Cade que cabe, na aplicação da lei antitruste, definir os termos dos acordos e posteriores alterações com base na sua própria avaliação sobre as medidas necessárias para evitar danos à concorrência? Por que poderia o Cade prorrogar o prazo ou alterar a forma de cumprimento de determinadas obrigações, e não poderia estabelecer prazo indeterminado, se assim julgasse mais conveniente e oportuno?
Pedidos de revisão de acordos fazem parte da realidade da autarquia, e por vezes resultam na implementação de alterações relativas ao prazo para adimplemento de algumas obrigações. O que faria essa alteração específica ser ilegal?
A decisão de casos antitruste é matéria notoriamente complexa, ancorada na análise dos contextos fáticos de cada caso e ponderações sobre a probabilidade de cenários futuros. Em se tratando da aplicação da lei antitruste pelo Cade, faz pouco sentido imaginar que há, previamente, no direito uma solução pré-concebida, uma única resposta correta, uma única resposta lícita, de cujo afastamento resultaria ilegalidade.
Nos casos envolvendo a celebração de acordos, isso é ainda mais evidente – afinal, são vários os formatos e desenhos que podem ser estabelecidos nas negociações entre o Cade e agentes privados. Assim, há sempre o risco de que argumentos no sentido de que uma dada solução seria a exigida pelo direito (a única lícita, portanto) seja apenas uma forma de imposição de alguma alternativa preferida pelos juízes.
É justamente essa linha de ponderação que tem dado ensejo à defesa da deferência (ou autocontenção) do judiciário em face de decisões tomadas por órgãos administrativos especializados, como é o caso do Cade. Em alguns países, como na Itália, a jurisprudência relativa ao controle judicial da autoridade antitruste foi justamente o locus da concepção da orientação judicial deferente, dada a sua complexidade. No Brasil, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu a favor dessa tese em algumas ocasiões (ver, por exemplo: ADI 4.874 e ADPF 825/DF).
Como se disse, a medida judicial surpreendeu por ir na direção diametralmente oposta a essa tese. Como resultado do atropelo judicial, coube aos juízes, e não ao Cade, definir (i) o prazo adequado, para fins de proteção à concorrência, dos desinvestimentos devidos pela CSN; (ii) a punição a esse descumprimento por meio de multa; e (iii) o valor dessa multa. As linhas demarcatórias dos espaços institucionais parecem ter sido cruzadas algumas vezes. [logo-jota]
*TICIANA LIMA
Sócia de VMCA Advogados
*EDUARDO JORDÃO
Professor da FGV Direito Rio e sócio do Portugal Ribeiro e Jordão Advogados. Doutor pelas Universidades de Paris e de Roma. Mestre pela USP e pela LSE. Foi pesquisador visitante em Harvard, Yale, MIT e Institutos Max Planck