Quando se fala em livre mercado, poucos nomes surgem tão rápido quanto o do economista escocês Adam Smith. No século XVIII, ele formulou a teoria da “mão invisível”: ao buscar seus próprios interesses, indivíduos acabam promovendo o bem-estar coletivo. Para Smith, mercados livres, concorrência e limitação do poder estatal eram essenciais ao progresso econômico. Sua teoria pautou o desenvolvimento de grandes nações. Mas como ele avaliaria um governo como o de Donald Trump, que se dizia pró-mercado?
Smith defendia que a economia prospera quando o Estado se limita a funções básicas: garantir justiça, segurança e infraestrutura. Em “A Riqueza das Nações” (1776), argumentou que o mercado, quando livre, é mais eficiente do que qualquer burocracia central em alocar recursos. Ele via com desconfiança subsídios, tarifas e privilégios concedidos a setores específicos, pois distorcem a concorrência e criam ineficiências.
“Não é por causa da benevolência do padeiro, do cervejeiro ou do açougueiro que esperamos o nosso jantar, mas por causa da consideração que eles têm ao seu próprio interesse”, escreveu.
Contudo, Smith não era um libertário extremo. Reconhecia a necessidade de regulação em áreas como saúde pública, educação e proteção aos trabalhadores. Sua defesa do mercado vinha acompanhada de um senso de responsabilidade moral, expresso em “Teoria dos Sentimentos Morais”: “Nenhuma sociedade pode ser próspera e feliz se a grande maioria de seus membros for pobre e miserável”.
Já no seu primeiro mandato, Trump cortou impostos corporativos, desmontou regulações ambientais e promoveu uma agenda “pró-negócios”. Ao mesmo tempo, impôs tarifas sobre produtos chineses e europeus, pressionou montadoras a manter fábricas nos EUA e concedeu bilhões em subsídios a agricultores afetados pela guerra comercial que ele próprio iniciou. Para proteger o aço e o alumínio, taxou importações inclusive de aliados como Canadá e União Europeia. No fundo, tratou o comércio como um jogo de soma zero – conceito que Smith combateu no século XVIII.
Essas políticas impulsionaram o PIB e reduziram o desemprego no curto prazo, mas aumentaram a dívida pública, distorceram o comércio e elevaram preços ao consumidor. Smith talvez visse com ceticismo o argumento trumpista de “America First”, especialmente quando isso significou proteger empresas ineficientes via tarifas e limitar a concorrência externa. “As máximas do comércio livre são tão justas quanto óbvias: nunca tente fazer em casa aquilo que custa mais do que comprar de fora”, escreveu.
Trump também expôs uma tensão real: mercados livres nem sempre distribuem benefícios de forma imediata. O fechamento de fábricas e a perda de empregos industriais alimentaram o descontentamento social. Para Smith, isso indicaria que a liberdade de mercado precisa ser acompanhada de mecanismos que assegurem coesão social – sem recorrer ao protecionismo que mina a eficiência no longo prazo.
Smith acreditava na liberdade econômica como regra geral. Trump aplicou um “liberalismo condicional”: liberdade para uns, proteção para outros; desregulação em certos setores, controle em outros. A política industrial trumpista não eliminou a intervenção estatal, apenas a redirecionou. O resultado foi um ambiente de negócios instável, com incentivos pouco transparentes e dependente das decisões do presidente.
Smith não era político e não precisava de votos. Defender princípios de livre mercado é mais fácil quando não se enfrenta a pressão eleitoral. Se fosse político, manteria suas convicções ou cederia a demandas imediatas para preservar apoio? A dúvida mostra como teoria e prática podem se chocar.
Comparações com outros liberais clássicos reforçam a crítica. David Ricardo, por exemplo, demonstrou em sua teoria das vantagens comparativas que o comércio beneficia todos os países quando cada um se especializa no que produz melhor. O protecionismo de Trump, porém, ecoa práticas como a Lei Smoot-Hawley (1930), que elevou tarifas e agravou a Grande Depressão.
No plano doméstico, seus subsídios à agricultura ilustram o ciclo vicioso: intervenção gera perdas, que exigem mais intervenção. Smith provavelmente veria no governo Trump um paradoxo – um líder que dizia defender o mercado, mas recorria com frequência à intervenção. Ambos falavam de prosperidade. Mas um confiava no sistema; o outro, nele mesmo.
Ao final, Smith não ignoraria as dores sociais causadas pelas falhas do mercado. Mas defenderia soluções universais e estruturais, como educação e mobilidade, em vez de paliativos intervencionistas que perpetuam desigualdade e ineficiência. “A riqueza de uma nação é medida não pelas fortunas de seus ricos, mas pelo bem-estar de seu povo.”
*Andréa Angelo estrategista de inflação da Warren Investimentos