
Com mercado consumidor local razoável, entre outras características, o Brasil parece relativamente bem posicionado para enfrentar tensões geopolíticas e econômicas globais no médio longo prazo, envolvendo, por exemplo, as políticas comerciais dos Estados Unidos. Mas pode haver um desafio futuro, consequência indireta da guerra tarifária do presidente americano, Donald Trump: a larga entrada de produtos da China. É o que aponta Nathan Sheets, economista-chefe global do Citi.
“Em três a cinco anos, esse pode se tornar o maior problema: como vocês estarão gerenciando as exportações da China [para o Brasil] e o que isso vai significar para a economia e o comércio do Brasil?”
Apesar de reconhecer que, no curto prazo, o Brasil foi “arrastado por divergências políticas e ideológicas” entre seu presidente, Lula, e Trump, Sheets se mostra otimista com a relação comercial entre os dois países no horizonte mais amplo. O fato de o Brasil, inclusive, ter déficit comercial com os americanos “deve contribuir para uma postura menos agressiva dos EUA”, diz. “Parece que há espaço para negociação aí. Eu estaria otimista em relação ao corredor comercial EUA-Brasil, se não em um horizonte de três ou seis meses, em um de três a cinco anos”, afirma.
Já a relação EUA-China se estabeleceu como uma “competição estratégica” e a rivalidade contínua seguirá trazendo episódios de escala e desescalada como o observado nos últimos dias, diz Sheets.
Em relação ao dólar, ele tem a avaliação de que a tendência de longo prazo é a moeda continuar se enfraquecendo globalmente. No curto prazo, porém, Sheets diz esperar certa estabilidade, porque há forças diversas atuando, como o corte de juros nos EUA, puxando o dólar para baixo, e a resiliência da economia americana, trazendo a moeda para cima, principalmente se o país continuar a receber impulso da inteligência artificial (IA).
“Há razões muito significativas para se preocupar com o fiscal nos EUA e em outros países”
Em um relatório recente, o Citi comparou os investimentos em IA nos EUA ao paradigma do boom da internet nos anos 1990. Embora as evidências de impacto generalizado da IA na produtividade americana ainda sejam limitadas, o Citi estima que ela pode trazer um ganho total de produtividade de 6% a 16% ao longo de uma década.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Recentemente, vimos, de novo, escala e depois distensão na relação entre EUA e China. Como vocês têm acompanhado isso?
Nathan Sheets: O que vimos nos últimos dias reflete a divisão cada vez mais profunda entre os EUA e a China. Em Washington, uma década atrás, houve um debate sobre como encarar a ascensão da China, se haveria potencial de ser vantajoso para todos ou se seria um jogo de soma zero. A ascensão da China significou ameaças, desafios e dificuldades para os EUA e outros países, esse debate em Washington está definido. A conclusão geral, pelo menos até o momento, é que se trata de uma competição estratégica. Tem sido assim nos últimos sete anos. Isso significa que haverá tensões e intensificações episódicas, como nos últimos dias, em um contexto de pressões contínuas. Agora, mais especificamente, acredito que o governo Trump, ao implementar as tarifas, esteja tentando atingir uma série de objetivos.
Valor: Quais?
Sheets: Um dos principais é limitar o acesso da China ao mercado americano. E os efeitos das tarifas até agora neste ano foram claramente os mais severos nesse sentido. O vaivém dos últimos dias, creio, manifestou isso. Pode ser que o presidente Xi Jinping, ao entrar no que parecia ser uma discussão com Trump, estivesse fazendo uma exibição de força em alguns de seus anúncios, incluindo sobre minerais críticos e terras raras. Mas não creio que o presidente Trump queira entrar nesse tipo de processo e ele respondeu com veemência. A postura que normalmente ocorre antes de uma cúpula levou a uma rápida escalada. Agora, os dois lados estão em uma posição tensa, tentando refletir: bem, o que vamos fazer a respeito?
Valor: Qual a sua expectativa?
Sheets: Acredito que veremos alguns passos, provavelmente graduais, nos próximos dias e semanas em direção à desescalada. Mas isso é apenas uma manifestação dessas tendências mais profundas. Eu imagino que veremos novos episódios de escalada, ameaças e desescalada nos próximos meses e anos. Isso se dá no contexto dessa rivalidade contínua, da competição estratégica entre os dois lados.
Valor: E como o sr. vê a situação do Brasil em relação aos EUA?
Sheets: Acredito que há uma situação em que o Brasil, a médio e longo prazo, pode estar relativamente bem posicionado. Primeiro, porque é uma grande economia emergente com uma demanda interna razoável. Simplesmente, o Brasil não é tão dependente de exportações para os EUA como muitos outros países. Além disso, o Brasil tem, de fato, um déficit comercial com os EUA. Isso também deve contribuir para uma postura menos agressiva dos EUA. O que aconteceu é que alguns desses fundamentos nesse conflito comercial foram arrastados por divergências políticas e ideológicas entre os dois presidentes. Mas me parece que há espaço para negociação aí. Eu estaria otimista em relação ao corredor comercial EUA-Brasil, se não em um horizonte de três ou seis meses, em um de três a cinco anos. Uma última reflexão para o Brasil: à medida que os EUA fecham ou pelo menos limitam cada vez mais o acesso da China ao mercado americano, a China buscará outros bolsões de demanda ao redor do mundo. Isso inclui a Europa, que terá de decidir quanto vai absorver, e acho que o Brasil também terá maior acesso aos produtos chineses. O que isso significa para o consumidor brasileiro? Que produtos de custo relativamente baixo, provavelmente, serão atrativos. O que isso significa para a situação comercial do Brasil?
“Os países periféricos estão se saindo melhor, mas ainda apresentam altos níveis de endividamento”
Valor: O que significa?
Sheets: Pode se tornar um problema maior a médio prazo. É mais um efeito indireto do que direto das tarifas. Mas em três a cinco anos, esse pode se tornar o maior problema: como vocês estarão gerenciando as exportações da China [para o Brasil] e o que isso vai significar para a economia e o comércio do Brasil?
Valor: O sr. acha que a entrada de produtos chineses, no futuro, pode desafiar a produção brasileira?
Sheets: É algo a se pensar. Você pode argumentar que é uma grande oportunidade, já que a China terá uma enorme oferta de produtos que estava vendendo aos EUA e que, para vender em outros países, estará comprometida em encontrar um preço que faça isso funcionar. Mas o que isso significa para a balança comercial [do Brasil]? Isso tira espaço da produção e da manufatura nacionais? Quais são as implicações disso? Há ainda um outro ângulo sobre o tema, que é a retaliação contra os EUA quando implementam as tarifas.
Valor: Como assim?
Sheets: Ela tem sido bastante limitada, mas um setor em que há retaliação é no agrícola. Na medida em que produtos agrícolas americanos não podem ser vendidos na mesma proporção na China, isso pode significar oportunidades para o Brasil. Mas também pode significar uma concorrência global maior para os agricultores brasileiros. Como isso vai se desenrolar no setor agrícola pode ter implicações importantes ao Brasil.
Valor: Acha que o mercado está mais acostumado com as ameaças de Trump a outros países e menos propenso a reações extremas?
Sheets: Já se passaram quase nove meses do segundo mandato de Trump e estamos nos familiarizando cada vez mais com a forma como esse governo opera, adquirindo noção melhor do que eles provavelmente farão e não farão e quais podem ser as implicações das várias políticas. Nada foi totalmente implementado e ainda estamos aprendendo em tempo real, mas temos uma noção melhor de onde as coisas estão. Em outras palavras, a incerteza política, que era alta no início do governo, está começando a diminuir. A incerteza econômica ainda é elevada, mas não tanto quanto era. Acho razoável que os mercados estejam reagindo um pouco menos a esses vários tipos de ameaças. No entanto, acabamos de ver um episódio em que Trump e Xi tiveram um forte desentendimento e os mercados reagiram significativamente. A trajetória é em direção a uma espécie de aclimatação ao estilo de atuação de Trump, redução da incerteza política e da incerteza econômica, mas ainda existem questões-chave que podem desencadear uma resposta do mercado. Conforme as políticas evoluem, os mercados também não vão ignorar.
Valor: Temos visto um enfraquecimento do dólar no ano, mas, na semana passada, por exemplo, o mercado reagiu. Como vocês estão acompanhando esses movimentos?
Sheets: O fato de o dólar ter caído no primeiro semestre deste ano foi uma grande surpresa. A expectativa, na teoria, quando se colocam tarifas é que o dólar valorize. Essa é uma das razões pelas quais ele subiu após a eleição de Trump. Então, claramente, vimos o surgimento de um prêmio de risco e, em seguida, uma espécie de dólar estável em um nível mais baixo. Além do prêmio de risco, o fato de o Fed [Federal Reserve, banco central dos EUA] ter sinalizado afrouxamento da política monetária, e ter iniciado o processo de flexibilização, também foi fator em jogo.
Valor: O que o sr. espera para o comportamento do dólar à frente?
Sheets: No curto prazo, não me inclinaria muito para uma direção ou para outra. O Fed vai cortar mais, conforme as expectativas do mercado e que é a nossa expectativa também. Isso criaria alguma pressão baixista. Por outro lado, a economia americana teve um desempenho melhor do que o esperado, e isso, provavelmente, será fonte de força. Acredito que um dólar estável nos níveis atuais é provável nos próximos três ou quatro meses. No longo prazo, ele ainda está em nível historicamente forte. Então, em um horizonte de três a cinco anos, acredito que o dólar tem maior probabilidade de enfraquecer. Para o próximo ano, nosso estrategista de câmbio argumenta, como mencionei, que os mercados estão gradualmente se tornando mais confortáveis com a forma como o governo Trump opera, os cortes do Fed já estão amplamente precificados e há razões para acreditar que a economia dos EUA poderá se sair ao menos tão bem quanto o esperado – pode ser até um pouco melhor, se continuarmos a receber impulso da inteligência artificial (IA). Talvez, no próximo ano, possamos ter um dólar mais forte. É por isso que eu gosto da ideia de um dólar estável. Vejo argumentos para um dólar mais fraco a médio longo prazo, mas também vejo razões para que um pouco da desaceleração que vimos este ano possa ser revertida, e alguns efeitos das tarifas que se esperava que estivessem nas taxas de câmbio comecem a se manifestar. Como equilibrar todos esses diferentes fatores? Talvez, implique dólar meio estagnado. Ficaria surpreso se ele se movesse muito.
Valor: O sr. atuou no Tesouro americano. Como tem acompanhado a questão fiscal dos países?
Sheets: Minha experiência como economista é que sempre que as pessoas argumentam que dessa vez é diferente é preciso ter cuidado, porque, geralmente, não é. Acredito que há razões muito significativas para se preocupar com o desempenho fiscal dos EUA e com os níveis de dívida em muitos países. Temos uma economia global muito endividada, e os setores públicos, em particular, apresentam níveis de dívida notavelmente altos. Nos EUA, a dívida federal está pouco abaixo de 100% do PIB. Se incluirmos os governos regionais, estamos acima de 120%. Portanto, o governo americano está muito endividado. E as estimativas sugerem que o governo federal terá déficits, em média, de 6% do PIB ao longo da próxima década, o que implicaria uma emissão de títulos do Tesouro nesse período da ordem de US$ 20 trilhões. Terá de emitir muita dívida. Uma das principais perguntas que me fazem em reuniões com investidores pelo mundo é: quem vai comprar toda essa dívida e a que taxa? Quais são os riscos associados? Acho que são consideráveis. Acredito que o rendimento dos títulos do Tesouro está mais alto do que estaria se os EUA tivessem níveis de incerteza mais baixos e déficits projetados menores. Mas os EUA não estão sozinhos. A França agora está muito no centro, com desafios políticos aliados à política fiscal. Os níveis de incerteza no Japão estão claramente muito altos. Há muitos outros países com problemas de dívida: Reino Unido, Canadá, muitos outros na Europa continental, como Itália e Bélgica. Os países periféricos estão se saindo melhor, mas ainda apresentam altos níveis de endividamento. Existem alguns mercados emergentes com níveis de dívida superiores a 75% do PIB, nas projeções das Nações Unidas, incluindo China, Índia e Brasil.
Valor: Mas os mercados parecem mais lenientes com tudo isso…
Sheets: Até agora, os mercados e a comunidade de investidores têm absorvido a situação. Mas acredito que há muito risco e muita preocupação em muitos lugares sobre o rumo que isso está tomando. Talvez, a gente já tenha visto no Reino Unido, em 2022, tensões com a política fiscal e a emissão. Isso foi resolvido pelo Banco da Inglaterra, com a intervenção do presidente [do banco central, Andrew] Bailey, que comprou títulos do governo. É imaginável que possamos ver mais disso em vários outros mercados, com uma variedade de riscos potenciais.
Valor: O Nobel de Economia deste ano foi para pesquisas relacionando inovação e desenvolvimento. O sr. citou a possibilidade de um “impulso de IA” estimular ainda mais a economia americana, e o Citi elaborou um relatório sobre o tema. Como seria isso?
Sheets: Sim, no nosso relatório, inclusive, citamos alguns trabalhos do Philippe Aghion, que foi um dos ganhadores do Nobel. Eu acho que está claro que a IA, a médio prazo – com alguma incerteza sobre quantos anos levará, digamos três ou quatro anos -, aumentará a produtividade. E a estrutura para pensarmos sobre isso vem de outro ganhador do Nobel, Daron Acemoglu. Ele escreveu um artigo em que disse que uma maneira de analisar o impacto que a IA terá na produtividade é pensar em todas as tarefas sendo realizadas na economia, qual parcela será feita por IA e, então, nessas diversas tarefas, em média, com que produtividade e eficiência seremos capazes de realizá-las. De modo geral, na literatura, chegou-se a um ponto em que 20% a 40% das tarefas na economia podem ser realizadas pela IA. E, nesses 20% a 40% das tarefas, os ganhos de produtividade serão de 30% a 40%. Se tivermos 20% das tarefas feitas por IA e obtivermos um ganho de produtividade de 30%, isso daria 6% [de ganho de produtividade com IA na economia em geral]. Se tivermos 40% das tarefas com IA e um ganho de produtividade de 40%, isso daria 16%. Quando fazemos isso, acabamos com algo no meio dessa faixa de estimativa, ou seja, um aumento de produtividade de cerca de 1 ponto percentual ao ano, o que seria bastante substancial.
Valor: Mas quando é a virada?
Sheets: Um ponto importante que enfatizamos é que o desempenho recente da produtividade [nos Estados Unidos] ainda não reflete a IA. No entanto, o investimento em IA tem sido muito importante para apoiar a economia. Isso é algo que vimos mesmo durante o primeiro semestre deste ano. Foi um motor significativo do crescimento americano: diretamente por meio dos investimentos; e, depois, o aumento nos preços das ações impulsionou os efeitos sobre a riqueza e os gastos em consumo. Mas a grande questão é quando a IA e esses efeitos que eu descrevi – de, talvez, um ponto percentual ao ano – se manifestarão na produtividade. Ainda parece que faltam alguns anos, mas não mais que alguns. Eu diria que, talvez, dois ou três, três ou quatro anos. As empresas estão investindo e adotando IA vigorosamente. Ainda não é totalmente escalável. Mas, à medida que esses investimentos amadurecem, acredito que veremos cada vez mais impacto nos indicadores de produtividade.