
Nem toda boa ideia nasce em um escritório moderno ou em uma start-up milionária. Às vezes, ela surge no silêncio de um laboratório universitário, entre vidrarias e restos de materiais que quase ninguém olharia duas vezes. Foi nesse ambiente, na Universidade Federal de Lavras (UFLA), que um grupo de cientistas resolveu dar novo destino ao que o mundo chama de lixo — e acabou encontrando uma forma de devolver vida à água.
A equipe criou um fotocatalisador flutuante — um nome que parece técnico demais, mas que esconde algo poético: um material capaz de limpar a água usando luz do sol. Ele boia, absorve poluentes e os decompõe com ajuda da energia solar. É, em resumo, uma espécie de “esponja solar” feita de sobras da indústria.
A invenção nasceu de uma inquietação comum entre quem lida com o meio ambiente: como tratar a água de rios e córregos em lugares que ainda não têm estações de tratamento? Em muitos municípios pequenos ou zonas rurais, a contaminação corre solta, literalmente, e as soluções tradicionais são caras ou complexas demais. Foi diante dessa dificuldade que o professor Fabiano Magalhães, do Departamento de Química da UFLA, e sua equipe decidiram experimentar caminhos alternativos.
Eles usaram resíduos de siderurgia — o pó que sobra do processo de fundição do aço, rico em óxido de zinco —, misturaram a uma base de bio-óleo de eucalipto e perlita expandida, um tipo de vidro vulcânico leve e barato. Dessa combinação nasceu o composto que, ao ser colocado sobre a água, flutua como uma pequena jangada tecnológica. Quando o sol bate, o material entra em ação, quebrando moléculas de corantes e outros compostos tóxicos, devolvendo transparência à água.
Nos testes iniciais, a equipe escolheu um vilão clássico: o corante têxtil preto remazol, um dos mais resistentes e poluentes. “A ideia era começar por algo difícil, para medir o potencial real do material”, explica Magalhães. O experimento funcionou em água destilada e também em amostras de rio — com resultados surpreendentes. O fotocatalisador conseguiu degradar boa parte do corante e, melhor ainda, pôde ser reutilizado diversas vezes.
“É uma tecnologia simples, de baixo custo e que aproveita resíduos que normalmente seriam descartados”, diz o professor. “A gente está transformando um passivo ambiental em uma ferramenta de purificação.”
A frase resume o espírito do projeto: fazer mais com menos. Em vez de criar algo novo e caro, a equipe preferiu repensar o que já existia — uma lógica que combina perfeitamente com a ideia de economia circular, em que nada é desperdiçado e tudo pode ganhar nova função.
Luz, água e engenhosidade
Para quem acompanha o trabalho no laboratório, o processo é quase hipnótico. O fotocatalisador, quando exposto à luz ultravioleta — ou até mesmo à luz natural —, ativa uma reação química que quebra as impurezas da água em compostos menores, inofensivos. O princípio é o mesmo que faz certas tintas autolimpantes e vidros de edifícios repelirem sujeira. Só que, neste caso, a mágica acontece em escala ambiental.
Mas nem tudo é simples. O desempenho do material depende de fatores como pH, temperatura e concentração de poluentes. “Cada tipo de efluente tem suas particularidades”, explica Magalhães. “A gente precisa ajustar o processo conforme a origem da água e o tipo de contaminação.” Ainda assim, os resultados são animadores — e colocam o grupo da UFLA entre as referências nacionais em pesquisa sobre fotocatálise ambiental.
A equipe é diversa e entusiasmada. Entre os nomes, destaca-se o de Tibúrcio da Gracinda Lopes Chembeze, professor moçambicano que faz doutorado na UFLA e traz uma perspectiva valiosa sobre o uso de tecnologias acessíveis em países em desenvolvimento. Ao lado dele, os estudantes Aline Borges Alves, Bárbara Teles Porto e Gabriel Hatiro Miya vivem o dia a dia da pesquisa, entre experimentos, registros de dados e muita paciência com os imprevistos que só quem trabalha em laboratório conhece.
“É bonito ver o brilho nos olhos deles quando algo funciona”, conta Magalhães. “Porque ciência é isso — é tentativa, erro e descoberta. É olhar para o que deu errado e entender que é parte do caminho.”
Do campus para o mundo
A história da “esponja solar” é, também, uma história de parcerias. Além da UFLA, o projeto reúne pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e da Universidade Federal de Alfenas (Unifal). É uma rede de colaboração que combina diferentes expertises — da química de materiais à análise estrutural.
O trabalho conta com apoio do CNPq, da Capes e da Fapemig, e foi apresentado recentemente na Reunião Nacional da Sociedade Brasileira de Química, um dos maiores encontros científicos do país. Mas o impacto do projeto vai além dos congressos. A proposta desperta o interesse de prefeituras e organizações ambientais que buscam alternativas simples para tratar pequenas quantidades de água contaminada.
“Não queremos criar algo que dependa de uma grande infraestrutura”, explica o pesquisador. “Nosso objetivo é que essa tecnologia possa ser aplicada em locais afastados, onde o acesso à rede de saneamento é limitado.”
No fundo, o que o grupo da UFLA propõe é um novo modo de olhar para os resíduos e para a própria ideia de progresso. “A sustentabilidade não precisa ser uma palavra bonita num relatório”, diz Magalhães. “Ela pode ser concreta, prática, nascendo daquilo que a gente já tem.”
A água como espelho
Enquanto o mundo discute as crises climáticas, o projeto mineiro nos lembra que cuidar da água é cuidar de tudo. A pureza dos rios não é apenas uma questão ecológica; é também social, cultural, simbólica. A água é espelho e memória — reflete o que somos e o que descartamos.
Por isso, há algo profundamente humano na invenção desses pesquisadores. É como se o fotocatalisador flutuante representasse a capacidade que temos de reinventar as próprias sobras, de fazer nascer do resíduo uma promessa de futuro.
A equipe sabe que o caminho é longo. O material ainda precisa ser testado em ambientes reais, com volumes maiores e sob condições naturais variadas. Mas o passo inicial foi dado — e com firmeza. A esperança, dizem eles, é que a tecnologia inspire outras soluções parecidas: simples, eficazes e possíveis.
A pesquisa integra as ações da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT 2025), cujo tema é “Planeta Água: cultura oceânica para enfrentar as mudanças climáticas no meu território”. Um tema que, para o grupo de Lavras, não poderia ser mais simbólico. Afinal, o que eles fazem é exatamente isso: cuidar do planeta começando pelo que está perto — um córrego, um laboratório, um punhado de pó industrial que se transforma em ferramenta de cura.
No fim das contas, talvez seja esse o maior encanto da descoberta: mostrar que a inovação não precisa vir de uma sala high-tech em Tóquio ou de um investimento milionário no Vale do Silício. Às vezes, ela nasce no interior de Minas, de um olhar curioso sobre o que sobrou de um processo industrial. Nasce da vontade de ver um rio limpo.
E assim, no pequeno laboratório da UFLA, a água turva começa a clarear sob a luz do sol.