Elaine Santos: Disputas conceituais na mineração para a transição energética

Nos últimos meses, as matérias-primas estratégicas, como terras raras, lítio, nióbio, quartzo de ultra-alta pureza e cobre, voltaram ao centro do debate. Importa lembrar que aquilo que é considerado “crítico” ou “estratégico” varia conforme as listas de matérias-primas e os interesses de cada país, de acordo com o domínio de suas cadeias produtivas e vantagens geoeconômicas.

Esse é, aliás, um debate que mereceria outro artigo nesta seção, não por preciosismo conceitual (embora eu carregue também essa pecha), mas porque o modo como tratamos os conceitos, de forma vulgarizada ou aleatória, influencia o que comunicamos e, portanto, o que se compreende publicamente. Este texto, afinal, também é sobre um conceito: o de aceitação social.

E essas disputas conceituais não são meramente acadêmicas: refletem-se também nas dinâmicas geopolíticas, pois os próprios conceitos de “crítico” e “estratégico” funcionam como instrumentos de poder, definem quem tem prioridade de acesso, quem financia e quem controla as cadeias produtivas. Como a geopolítica do acesso a esses metais vem se alterando rapidamente, como mostram as negociações recentes entre grandes potências sobre terras raras, torna-se difícil acompanhar também o debate conceitual.

Cabe lembrar também que a última crise dos semicondutores, que à primeira vista pareceu ser fomentada pela China, teve outra origem: foi desencadeada após o governo holandês assumir o controle de uma subsidiária de um grupo chinês com sede na Holanda, sob alegação de riscos à segurança nacional. Um ato que, se tivesse ocorrido em qualquer país da periferia, dificilmente deixaria de ser classificado como “expropriação”, conceito cuja aplicação depende, em grande medida, das relações de poder que definem quem pode nomear o quê.

Mas as tensões em torno do controle de matérias-primas não se limitam às relações entre Estados: elas se desdobram nos territórios onde os recursos são extraídos. À medida que a mineração se intensifica para atender à demanda da transição energética e das tecnologias digitais, surgem novas frentes de conflito e também de pesquisa, sobretudo nas ciências sociais.

Apesar da centralidade do tema, ainda são poucos os estudos sistemáticos sobre a chamada aceitação social da mineração. Trata-se de um conceito importado de outros campos e, em grande medida, traduzido a partir de contextos nacionais com histórias relacionadas a mineração muito distintas das nossas. Essa circulação desigual de ideias reflete também a assimetria entre centro e periferia do conhecimento: enquanto alguns países acumulam produção consolidada sobre o tema, outros acabam adotando essas referências sem uma reflexão situada sobre suas próprias dinâmicas minerais, um processo que a literatura recente tem descrito como dependência de fronteira, também identificada em uma revisão sistemática que realizei.

Em meio às minhas leituras, percebi que os estudos sobre aceitação social das tecnologias renováveis parecem ser um campo mais consolidado. Neles, a sociologia e a psicologia frequentemente se aproximam, fundindo conceitos como atitude, intenção e comportamento. Alguns autores definem aceitação como “uma resposta favorável ou positiva, incluindo atitude, intenção, comportamento e, quando apropriado, uso, relacionada a uma tecnologia ou sistema sociotécnico, por membros de uma determinada unidade social”. O foco costuma estar em compreender como as pessoas percebem, interagem e se dispõem a aceitar tecnologias como painéis solares, turbinas eólicas e biomassa.

Na mineração, porém, o conceito se complexifica: envolve conflitos territoriais, desigualdades históricas e regionais, expectativas de desenvolvimento e tensões intergeracionais. Alguns reduzem o debate ao conhecido acrônimo NIMBY (Not in My Backyard, ou Não no meu quintal), usado para descrever a resistência de comunidades locais a empreendimentos energéticos ou minerários nas proximidades onde vivem. Mas esse enquadramento, apesar de interessante, me parece simplista: uma vez que as formas de aceitação, ou de não aceitação, têm raízes distintas e raramente são consensuais dentro das comunidades locais.

Outros autores aproximam a aceitação social da chamada licença social para operar (LSO). Embora muitas vezes usadas como sinônimos, são noções diferentes. Essa foi, aliás, uma das conclusões da revisão sistemática que publiquei recentemente: mesmo entre os autores críticos à mineração, a aceitação social é frequentemente entendida apenas como relação entre empresa e comunidade, o que não está incorreto, mas é limitado. A aceitação social pode, de fato, referir-se às comunidades diretamente afetadas por atividades extrativas, mas também a públicos mais amplos: consumidores, governos, investidores, trabalhadores, comunidades tradicionais, povos indígenas e ambientalistas. Trata-se do grau, sempre dinâmico e multiescalar, em que uma tecnologia, projeto ou atividade é considerado aceitável por diferentes grupos sociais.

Já a licença social para operar é uma formulação de origem empresarial. Ainda que se refira a um reconhecimento tácito por parte das comunidades, está atrelada à lógica da gestão: medir, monitorar e obter aceitação. Ian Thomson e Robert Boutilier, autores frequentemente citados nesse campo, desenvolveram um modelo em que a “licença” é algo a ser construído por meio de relações de confiança, reciprocidade e engajamento. Uma construção, digamos, um tanto artificializada, sobretudo quando aplicada a comunidades que possuem laços culturais densos e complexos, mas que acabam sendo instrumentalizadas. Os autores, porém, possuem textos interessantes, como o Modelo de narrativas e redes da licença social, em que Boutilier amplia essa discussão ao mostrar como redes de atores e narrativas políticas influenciam a concessão ou retirada da licença, reforçando que ela não é apenas uma relação bilateral empresa-comunidade, mas um fenômeno moldado por discursos e coalizões.

O curioso é que, no outro extremo, parte do ativismo reproduz uma limitação semelhante. Reconhece como “comunidade legítima” apenas os grupos que se opõem ao empreendimento, enquanto os que se mostram favoráveis ou ambíguos são vistos como cooptados, mal-informados ou instrumentalizados. Paradoxalmente, essas estratégias, tanto empresariais quanto ativistas, não geram passividade. Produzem mobilização, mas uma mobilização que desloca para as próprias comunidades a responsabilidade pelas oportunidades e também pelos riscos. Ao apresentá-las como corresponsáveis pelo sucesso ou fracasso dos empreendimentos, desloca-se o eixo da responsabilidade política: o que antes cabia ao Estado ou à empresa passa a ser interpretado como escolha local, quando estas comunidades sequer detêm poder de decisão.

No meu entendimento, em ambos os casos perde-se a densidade social do território. De um lado, apagam-se as relações históricas locais, as disputas internas, as dependências econômicas, os dilemas morais, as ambiguidades e negociações que moldam a vida coletiva. De outro, a comunidade deixa de ser objeto de compreensão e passa a ser instrumento de validação, seja da narrativa empresarial (comunidades parceiras), seja da narrativa ativista (comunidades em resistência). E o Estado, assim como os municípios mineradores, se ausentam ainda mais.

Obviamente, não pretendo concluir o debate aqui, até porque esta discussão também me abriu outras reflexões. Mas talvez seja o caso de voltarmos a ele com o mesmo rigor que dedicamos a outras transições, inclusive as conceituais. Afinal, enquanto confundirmos aceitação com consentimento, e comunidade com adesão, continuaremos a perder de vista o que realmente está em jogo: a disputa sobre quem define o que é aceitável, e em nome de quem.

*Elaine Santos, pós-doutora pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

Compartilhe esse artigo

Açogiga Indústrias Mecânicas

A AÇOGIGA é referência no setor metalmecânico, reconhecida por sua estrutura robusta e pela versatilidade de suas operações.
Últimas Notícias