
Quase três décadas depois da privatização da RFFSA, o futuro da Ferrovia Transnordestina Logística (FTL) passa por uma inflexão rara na história da infraestrutura brasileira. A concessionária que opera a antiga rede ferroviária propôs devolver cerca de 3 mil km de trilhos ao governo federal – mais de 70% da chamada Malha Nordeste, que se estende por sete Estados e hoje conta com apenas 1.200 km em operação, ligando o Maranhão ao Ceará, passando pelo Piauí.
Apresentada em audiência no Tribunal de Contas da União (TCU), a iniciativa abre espaço para um processo inédito: em vez de ampliar a malha ferroviária, o país discute como desmontá-la, reaproveitá-la ou transferi-la para outros usos urbanos. Em jogo está a redefinição do que fazer com uma infraestrutura concebida para integrar o interior do Nordeste aos portos e que, ao longo de décadas, foi sendo corroída por abandono, conflitos regulatórios e falta de viabilidade econômica.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) afirma que a FTL descumpriu obrigações contratuais, o que daria à União direito a indenização. O plano em discussão no governo prevê um pacote de investimentos de R$ 3,1 bilhões: R$ 1,7 bilhão em compensações e R$ 1,4 bilhão para manter operacionais os trechos remanescentes de transporte de cargas.
A concessionária, contudo, questiona os valores e sustenta que a situação atual decorre de três fatores: danos climáticos severos, deterioração estrutural herdada da antiga RFFSA e inviabilidade econômica de segmentos inteiros, onde o volume de carga não justificaria a operação.
Sem consenso, o caso foi levado ao TCU, que conduz as negociações desde julho por meio de uma Comissão de Solução Consensual. O tribunal afirma que o tema envolve “questões econômicas, operacionais e jurídicas complexas” e exige equilíbrio entre o interesse público, a sustentabilidade regulatória e a capacidade dos municípios de absorver áreas ferroviárias desativadas.
A Transnordestina Logística, subsidiária da CSN que detém a concessão, diz estar interessada na proposta e defende a renovação antecipada do contrato, previsto para vencer em 2027. “Nós temos todo o interesse em manter o contrato, mas nossa proposta é melhorar e ampliar onde faz sentido e dar outro destino onde essa ferrovia não tem condições de operar”, diz Tufi Daher Filho, presidente da Transnordestina. Segundo ele, a CSN está disposta a modernizar o trecho que liga o Maranhão ao Ceará, responsável pelo transporte de cerca de 80% do combustível consumido no Piauí.
Malha Nordeste foi corroída ao longo dos anos por falta de viabilidade, abandono e conflito regulatório
O debate também trata do destino dos trechos que estão desativados. A proposta em estudo prevê transformar partes da antiga ferrovia em corredores verdes, parques lineares, ciclovias e projetos de mobilidade, além de implantar VLTs em cidades como Arapiraca (AL) e Campina Grande (PB). Em grandes centros, antigas faixas férreas poderiam dar lugar a trens metropolitanos ou projetos de reurbanização orientada ao transporte.
Técnicos, entretanto, alertam para os custos do processo: o simples desmonte de trilhos e dormentes pode chegar a R$ 50 mil por quilômetro, sem contar o transporte e acondicionamento do material. “Estamos falando de uma malha heterogênea, com diferentes níveis de conservação. Cada trecho exigirá uma solução específica”, disse o auditor do TCU Geovaldo Oliveira.
Prefeituras foram chamadas a apresentar propostas e demonstrar capacidade de gestão – uma precaução para evitar que faixas ferroviárias abandonadas se tornem corredores de insegurança urbana. Pela lei, a devolução deve ser feita ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), embora a concessionária defenda repassar diretamente aos municípios.
O governo avalia prorrogar a concessão como parte do acordo, condicionando a extensão a investimentos, indenizações e programas de reurbanização. “Não estamos apenas falando de contratos e infraestrutura; estamos falando de pessoas e do impacto social sobre cidades e comunidades ao longo desses trechos”, afirmou o presidente do TCU, ministro Vital do Rêgo, ao abrir painel realizado em 8 de outubro para debater a devolução de trechos da ferrovia.