Etanol de milho bate recorde no Brasil, mas estoque para alimentação não chega a 0,1% da produção nacional

No último século, o milho deixou de ser um alimento ancestral e tornou-se uma commodity no Brasil. Na última década, tornou-se ainda protagonista da matriz energética brasileira. O país deve alcançar 8,2 bilhões de litros de etanol de milho em 2024/2025, um salto de quase 100 mil vezes em relação a 2014. No ano que vem, o cereal deve responder por 23,6% de todo o etanol nacional, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

De um lado, o mercado privado de biocombustíveis vive um boom, mirando nas oportunidades de negócios da chamada transição energética, com a substituição de combustíveis derivados do petróleo por fontes sustentáveis, como o etanol e o biodiesel, por exemplo. Do outro lado, o estoque público de milho – usado para regular preços e garantir a segurança alimentar – colapsou durante os anos de governo Bolsonaro. De um pico de 5,38 milhões de toneladas estocadas em 2009 pela Conab, restavam cerca de 120 mil toneladas em 2024, o equivalente a menos de 0,1% da produção nacional.

Para o pesquisador do do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), Felipe Barcelos e Silva, o crescimento meteórico do etanol de milho deve ser monitorado com rigor. “A produção de alimentos é mais prioritária do que a de biocombustíveis. Se o crescimento do milho pra etanol causar aumento do preço do milho ou reduzir o alimento disponível, torna-se um problema.”

O Ministério de Minas e Energia (MME) projeta que o país poderá produzir 15,6 bilhões de litros de etanol de milho até 2033, quase o dobro do volume atual. Essa expansão é impulsionada por legislações recentes como o RenovaBio (Lei nº 13.576/2017), que criou os Créditos de Descarbonização (CBIOs), e a Lei do Combustível do Futuro (Lei nº 14.993/2024), que estabelece metas obrigatórias para combustíveis mais limpos.

O crescimento é puxado principalmente pelo Centro-Oeste. No Mato Grosso, o estado que lidera o consumo, 77% de todo o milho utilizado tem como destino a produção de etanol. Entre 2023 e 2024, o consumo interno de milho cresceu 4,3 milhões de toneladas, sendo 3,9 milhões só pelo setor do etanol – ou seja, 90% da alta total.

Para o governo, o cenário é positivo. Em nota, o MME afirmou que “desde a entrada das usinas de etanol de milho no mercado, em 2017, a oferta do grão aumentou 48%” e que o milho usado no etanol representa “apenas 15% da produção total do país”.

Com o avanço da indústria de etanol, o milho passou a ser cada vez mais disputado. Quase toda a alta do consumo interno nos últimos anos veio da produção de biocombustível, pressionando a oferta nacional e reduzindo a sobra. Além da parcela destinada ao etanol, cerca de 67% do milho brasileiro vira ração. Alimentação e uso industrial representam 12% do total.

Ao mesmo tempo, os estoques públicos foram desmontados e hoje equivalem a menos de 0,1% da produção total. Sem essa reserva, o país perde sua capacidade de reagir diante de choques na safra, no câmbio ou nas exportações.

Sustentabilidade em disputa: o argumento técnico

Segundo dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), o Brasil possui 21 usinas de etanol que utilizam o milho, , sendo 11 no Mato Grosso, seis em Goiás, dois no Mato Grosso do Sul, um no Paraná e um em São Paulo. A área de crédito do Itaú BBA, no boletim “Etanol de milho: crescimento e desdobramentos para o mercado de DDGs”, mapeou 22 projetos de unidades novas ou de expansão das plantas atuais de etanol de milho. Os novos projetos expandem a geografia atual das usinas, podendo alcançar a região Norte-Nordeste.

O pesquisador José Lauro, da Embrapa Milho e Sorgo, vê na nova cadeia produtiva uma oportunidade de agregar valor ao grão e, ao mesmo tempo, reduzir emissões. “O milho tem uma característica interessante, que é a dobradinha com a soja”, explica.

Segundo ele, o fato de o milho utilizado para produção de biocombustível vir da entressafra da soja é uma salvaguarda em relação à soberania alimentar do país. “Ele vem em segunda safra. Ou seja, você planta soja, colhe, e depois planta o milho na mesma área. Isso quer dizer que ‘o milho não faz pressão para abrir novas áreas de cultivo’.”

Para Lauro, o modelo pode ser sustentável. “É uma vantagem logística e ambiental, porque o produtor otimiza maquinário, transporte e recursos humanos. E o etanol de milho pode ser mais de 30% vantajoso em relação à gasolina em termos de emissão de gases de efeito estufa”, afirma.

O pesquisador também destaca o ciclo virtuoso do processo: “O DDG, que é o coproduto do etanol, é rico em proteína e pode substituir parte do farelo de soja na ração animal. Assim, a gente fecha um ciclo de valor dentro da própria cadeia”.

Transição energética com justiça climática

Já Felipe Barcelos e Silva, do Iema, afirma que “não se trata apenas de reduzir emissões a qualquer custo, mas também de reduzir da maneira mais justa possível”. O pesquisador é responsável pelo estudo “Biocombustíveis no Brasil: alinhando transição energética e uso da terra para um país carbono negativo”, produzido em parceria com o Observatório do Clima, que aborda o tema sob a perspectiva da sustentabilidade e da justiça climática.

Barcelos e Silva defende o fortalecimento do planejamento territorial, o controle do desmatamento e os mecanismos de licenciamento ambiental. “A gente tem visto, na verdade, o movimento contrário, de busca de redução das condicionantes de licenciamento. Mas o Observatório do Clima tem trabalhado bastante para que isso não passe”, completa.

A pesquisa projeta cenários de expansão os biocombustíveis, como o etanol e o biodiesel, para reduzir as emissões de gases de efeito estufa em setores de difícil eletrificação, como o transporte de cargas e a indústria. O desafio central: como alcançar essa expansão sem provocar mais desmatamento e sem ameaçar a soberania alimentar.

As projeções preveem o uso de pastagens degradadas e o investimento em matérias-primas mais produtivas, como a macaúba, e em sistemas agroflorestais para evitar a dependência exclusiva de monoculturas como a soja e a cana.

Para o pesquisador do Iema, o país já dispõe de instrumentos técnicos importantes para orientar a ocupação das áreas disponíveis, como o mapeamento de pastagens degradadas e sua aptidão agrícola. Segundo ele, o desafio agora é político: transformar essas informações em diretrizes públicas que levem em conta a função social da terra, a redução das desigualdades e a justiça climática.

Choque de modelos: a disputa por terra, semente e sentido

Enquanto isso, no mundo dos negócios, o agronegócio brasileiro está focado em ocupar novos territórios, expandindo a fronteira agrícola.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023 a área plantada do país chegou a 96,3 milhões de hectares, um acréscimo de quase 5 milhões de ha em relação a 2022 (+5,5%), mantendo a tendência de alta de longo prazo.

E essa expansão recente se apoia justamente no pacote soja–milho, que amplia rapidamente a superfície efetivamente cultivada ano a ano.

O MapBiomas mostra que, entre 1985 e 2022, o território ocupado pela agricultura triplicou, saltando de 19,1 para 61 milhões de hectares. A área total dominada pela agropecuária já ocupa 10% do território brasileiro.

A coordenadora da Cooperativa Normandia, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Caruaru (PE), Juliana Arcoverde, descreve o cotidiano de quem resiste ao avanço da monocultura. “O agro não quer saber. Ele vai passando por cima. São plantações imensas de sementes transgênicas, com um grande aporte de mecanização, inclusive de irrigação também”, denuncia.

“Onde o agro tem sua área, o solo está contaminado, a água está contaminada, o ar está contaminado. O agro não destrói só a terra dele – ele destrói por onde passa.”

A coordenadora da cooperativa Normandia conta que, em Pernambuco, prefeituras distribuem sementes transgênicas para pequenos agricultores, inclusive nas festas juninas, época tradicional de plantio do milho.

“É uma luta pra gente convencer que o milho crioulo precisa ser incluído nessas políticas. O milho transgênico não é só um grão, é uma forma de tirar a autonomia do povo.”

“O Brasil acabou de sair do mapa da fome, mas ainda tem muita gente pra alimentar. A fome, a produção de alimento saudável, ganha essa briga. Não tem discussão.”

A transição energética, que promete sustentabilidade, é vista com desconfiança por quem vive da agricultura familiar e não enxerga o milho como uma commodity, mas um alimento tradicional. Juliana Arcoverde diz que o milho crioulo, cultivado no assentamento, “é uma identidade de um povo”.

“A semente crioula é algo ancestral. É uma resistência ao capitalismo, ao imperialismo, ao capital em si. Ela mostra quem somos e o cuidado que temos com a terra”, afirma.

“Não dá pra pegar essa semente, esse milho, e colocar como mercadoria pra produzir etanol, sem antes fazer o nosso dever de casa, que é alimentar o nosso povo”, diz.

Para ela, o cuscuz agroecológico produzido no assentamento é “um ato político”. “O cuscuz é a identidade do povo nordestino. A gente quer que ele chegue realmente à população, como alimento saudável, com a nossa semente crioula e o nosso modo de produção agroecológico”, explica.

“A gente trata como obrigação honrar essa semente. Ela é uma resistência e uma forma de existir fora da lógica do capital”, finaliza

O nó da regulação: risco real sem política pública

Para Felipe Barcelos, do Iema, o crescimento meteórico do etanol de milho deve ser monitorado com rigor. “Produzir milho apenas para etanol, fora da rotação de culturas ou desviando o alimento, não é desejável”, diz.

“A produção de alimentos é mais prioritária do que a de biocombustíveis. Se o crescimento do milho pra etanol causar aumento do preço do milho ou reduzir o alimento disponível, torna-se um problema.”

O pesquisador salienta que justiça climática não se fará somente com a substituição dos derivados de petróleo por biocombustíveis: “A meta não é apenas reduzir emissões a qualquer custo, mas reduzir da maneira mais justa possível, com políticas que redistribuam riqueza e protejam quem vive da terra.”

Tanto o Iema quanto a Embrapa apontam caminhos concretos. O estudo do Observatório do Clima mostra que o Brasil pode expandir sua bioenergia sem desmatar, ocupando apenas parte dos 100 milhões de hectares de pastagens degradadas.

“A gente pode praticamente zerar o desmatamento e ainda recuperar mais de 20 milhões de hectares de áreas naturais”, explica Barcelos. “O importante é planejar, zonear e monitorar. Temos que saber onde plantar, com que finalidade e sob quais critérios sociais.”

Entre as alternativas tecnológicas, estão o etanol de 2ª geração (2G) – produzido a partir do bagaço e da palha da cana ou do sabugo do milho – e o incentivo a espécies nativas, como a macaúba, “cerca de 10 vezes mais produtiva que a soja em óleo por hectare”, segundo o Iema.

Felipe defende também uma reindustrialização verde. “Podemos converter o parque de refino de petróleo em biorrefinarias, exportando produtos de maior valor agregado e gerando empregos qualificados. Isso é soberania também.”

O milho é nosso, mas para quê?

O milho, que por séculos alimentou o povo brasileiro e moldou festas, culinárias e resistências, hoje abastece motores e mercados. A expansão do etanol de milho coloca o Brasil diante de um dilema simbólico e material: produzir energia ou produzir comida. Para Juliana Arcoverde, a resposta é simples.

“O maior desejo é aumentar a nossa produção agroecológica pra que mais pessoas tenham acesso a alimentos saudáveis”, diz. “A gente quer alimentar o povo, e não a máquina.”

Felipe Barcelos concorda que o futuro do país dependerá de decisões estruturais: “O Brasil pode ser uma potência energética e alimentar ao mesmo tempo. Mas isso só será possível com planejamento, regulação e justiça climática”.

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