Uma emenda apresentada ao projeto que cria o Programa Especial de Sustentabilidade da Indústria Química (Presiq) pode beneficiar empresas do setor automotivo, ao flexibilizar o acesso aos incentivos de outro regime específico, o de desenvolvimento regional. A emenda elimina a exigência de investimento mínimo global, que pode ultrapassar R$ 2,5 bilhões, para projetos de reativação, modernização ou ampliação de plantas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste (exceto na Zona Franca de Manaus). Também autoriza que diferentes empresas usem a mesma fábrica já habilitada para acessar o benefício, por meio de contratos de uso ou compartilhamento.
Uma empresa que não atenderia ao investimento mínimo exigido pelas regras originais do regime de desenvolvimento regional poderá adquirir uma planta já habilitada e, com isso, acessar os incentivos. Essa mesma estrutura poderá ser utilizada por outras empresas, que também poderão se habilitar ao regime, obtendo os benefício e operando dentro da planta já credenciada. O projeto foi aprovado pelo Congresso e aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O regime de desenvolvimento regional reúne incentivos fiscais destinados a estimular a produção industrial no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, como crédito presumido de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), mediante contrapartidas de investimento e geração de emprego. O acesso sempre foi restrito a empresas que realizaram investimentos por determinado período e, no Nordeste, ficou concentrado em Pernambuco, Bahia e Ceará. Em 2025, a renúncia tributária total é de aproximadamente R$ 3 bilhões por grandes empresas.
No entanto, mesmo antes da emenda, já não bastava adquirir uma fábrica para acessar o regime. É preciso herdar o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) já habilitado. Foi o caso da BYD, que na Bahia não comprou apenas a antiga planta da Ford, mas o CNPJ que carregava o direito ao incentivo, garantindo a continuidade do benefício.
Fontes ouvidas pelo Valor afirmam que a emenda incluída no projeto do Presiq favorece diretamente a Comexport, empresa de importação e exportação que comprou a antiga planta da Troller no Ceará e, com isso, o CNPJ habilitado ao regime. A estrutura chegou a ser oferecida a outras montadoras, que não tiveram interesse por acreditarem que o regime de incentivo não seria prorrogado.
A mudança proposta no projeto de lei transforma na prática a Comexport em uma espécie de “condomínio industrial”, ou seja, ela concentra a habilitação ao incentivo e poderá montar veículos de várias marcas na mesma instalação, sem cumprir o investimento mínimo exigido das montadoras que aderiram às regras anteriores.
Além disso, qualquer fabricante que queira acessar o regime no Ceará terá de operar por meio da estrutura da Comexport, já que ela é a única planta habilitada do Estado. Neste caso, o benefício do crédito presumido será reconhecido de forma individualizada para cada empresa.
O relator do Presiq na Câmara, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), disse ao Valor que o pedido da emenda foi acolhido porque “é justificado”. “A empresa, pela lei atual, não conseguiria fazer os investimentos [mínimos de R$ 2,5 bilhões] anuais em apenas dois meses que faltam para completar o ano”, afirmou.
Na visão de fontes do setor ouvidas pelo Valor, o arranjo cria um contraste com empresas que investiram para obter o benefício e tende a elevar o volume de incentivos concedidos. Isso em um modelo que, segundo técnicos, pode se limitar a apenas montar os veículos, com baixa agregação de valor e sem estimular a produção local de peças. Esse cenário impacta a própria região, já que sem investimento relevante, afeta diretamente a relação com fornecedores, desenvolvimento e geração de mão de obra qualificada, diz uma fonte.
A General Motors (GM) também pode se beneficiar da mudança, já que negocia produzir um modelo elétrico na planta controlada pela Comexport no Ceará. Ao instalar o projeto em uma estrutura já habilitada, a montadora terá acesso ao incentivo fiscal regional sem precisar arcar com o investimento mínimo que tradicionalmente compunham o custo de entrada no regime. Na prática, o benefício será incorporado ao projeto sem o peso das contrapartidas que outras empresas tiveram de cumprir, reduzindo o custo final do produto, explicaram técnicos do setor ao Valor.
Além disso, empresas que já participam do regime, como Stellantis e BYD, cumpriram as contrapartidas exigidas e não dependem da planta do Ceará, disseram técnicos ao Valor. Elas investiram em suas estruturas produtivas no Nordeste e atendem aos requisitos do regime regional de forma independente. A crítica no setor é que a flexibilização proposta pela emenda retira essas contrapartidas para novos entrantes e permite que empresas que não fizeram investimentos equivalentes tenham acesso aos mesmos incentivos, pressionando a competição.
Na avaliação de fontes do governo, o ponto sensível do projeto está, também, no impacto fiscal. Isso porque uma única planta passa a servir de base para habilitar mais de uma empresa, o que amplia o número de beneficiários sem que a estrutura física se expanda na mesma proporção. Pelo projeto aprovado no Congresso, exigências de produção, pesquisa e desenvolvimento, uso da capacidade instalada e geração líquida de emprego são pré-requisitos para acesso ao benefício.
Ao Valor a GM afirmou que não é beneficiária direta da alteração proposta pelo projeto de lei e que a atualização do texto representa um avanço importante para a competitividade do setor automotivo nacional. “A proposta corrige uma lacuna da legislação ao permitir que plantas fabris já existentes e que receberam investimentos relevantes no passado possam ser reativadas sem a exigência de um investimento mínimo padronizado, originalmente concebido para projetos de implantação de fábricas totalmente novas”, diz.
Em nota, a empresa reforça que a medida não cria flexibilizações indevidas, mas preserva a obrigatoriedade de comprovação de metas de produção, investimentos em pesquisa e desenvolvimento e geração de empregos. Diz ainda reconhecer que “reativar, modernizar ou ampliar uma planta” tem dinâmica diferente da construção de uma planta nova e que exigir o mesmo investimento inicial violaria isonomia e proporcionalidade.
A GM também afirma que a mudança não desestimula novos investimentos, pois mantém nas empresas a responsabilidade de definir o capital necessário a cada projeto, respeitando a livre iniciativa e a concorrência. Sustenta também que a alteração é geral e impessoal, ampliando a possibilidade de habilitação de empresas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, preservando operações, empregos e arrecadação.
Procuradas, a Comexport, a BYD, a Stellantis, a Ford, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) não se posicionaram. Já o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) disse que não irá se manifestar por tratar-se de projeto elaborado e aprovado pelo Congresso e que ainda depende de análise e sanção presidencial.