Montadoras exploram novo nicho e apostam no potencial do mercado de autopeças usadas

Imagem da notícia

“É uma coisa que deixa a gente meio chocado no começo. O primeiro impulso é pensar ‘cara, isso é contraintuitivo”, diz o engenheiro Paulo Solti, vice-presidente de peças e serviços da Stellantis na América do Sul. “Depois você se acostuma, entende o negócio e o porquê da história.” Nas últimas três décadas, com breves interrupções, Solti trabalhou em montadoras de automóveis. Mas, desde agosto, sua missão é desmontar. Ele está à frente da Circular Autopeças, primeira empresa de reciclagem de componentes ligada a um fabricante de automóveis no Brasil — a Stellantis, líder de mercado, dona de marcas como Fiat, Jeep, RAM, Peugeot e Citroën. Construída em um galpão em Osasco (SP), a linha de desmontagem desfaz de dez a doze carros por dia. “Para o próximo ano completo, a gente já tem uma capacidade para oito mil unidades”, afirma o executivo.

O centro é o segundo do grupo no mundo — o primeiro foi inaugurado em Turim, na Itália — e sinaliza uma mudança profunda na estratégia de negócios da Stellantis. O objetivo não é apenas dar destinação correta aos carros em fim de vida, mas criar uma nova fonte de receita e de aprendizado tecnológico.

“O mercado de peças da América Latina é estimado em mais de 20 bilhões de euros, sendo que 80% estão nas mãos de empresas independentes e apenas 20% nas concessionárias”, afirma Solti. “Eu, como fabricante, ajudei a criar um negócio gigante e estou atendendo apenas uma parte dele. Com a Circular Autopeças, a gente entra também no aftermarket.”

A Circular Autopeças recebe veículos da própria Stellantis ou comprados em leilões — inclusive de outras marcas. Conforme a avaliação técnica, o carro inteiro ou partes dele seguem quatro destinos que a indústria chama de 4Rs: reutilizar, remanufaturar, reparar ou vender o material por peso, para reciclagem. As peças são fotografadas, catalogadas e revendidas em plataformas digitais, no Mercado Livre, por WhatsApp e numa loja física anexa ao galpão. A operação tem metas de rentabilidade e faz parte da estratégia de diversificação da Stellantis, que neste ano também adquiriu 70% da DPaschoal, consolidando-se como maior distribuidora de autopeças da América do Sul. A empresa quer capturar valor em todas as fases da vida do veículo — da fabricação à desmontagem —, criando um ecossistema de circularidade.

“Para nós, o centro de desmontagem não é só uma iniciativa ambiental. Ele também gera dados valiosos sobre o desempenho dos carros depois de anos de uso”, explica Solti. As informações coletadas ajudam os engenheiros a aprimorar o design de componentes, entender falhas recorrentes e desenvolver materiais mais duráveis.

O processo está conectado à aceleradora de ideias da Stellantis, um laboratório interno que testa soluções de economia circular e inteligência artificial (IA). Uma das frentes em estudo é o uso de modelos de IA para analisar o histórico de leilões e definir quais carros valem a pena adquirir para desmontagem, considerando preço, estado e potencial de revenda das peças.

Essa abordagem data driven reflete uma mudança na mentalidade da indústria. No passado, montadoras viam o pós-venda como um serviço de suporte. Agora, ele se torna um eixo estratégico de crescimento, impulsionado pela digitalização e pelo valor dos dados. Segundo Solti, uma peça recondicionada pode emitir até 50% menos CO2 do que uma nova, ao mesmo tempo que amplia a margem do negócio. “É uma equação que combina sustentabilidade com eficiência econômica”, afirma.

No Brasil, cerca de dois milhões de veículos chegam ao fim da vida útil todos os anos, mas apenas 1,5% passa por desmontagem formal. É um mercado subaproveitado, como também uma oportunidade para o país desenvolver soluções próprias.

A lógica da desmontagem também move a Renova Ecopeças, empresa da Porto, líder do mercado de seguro automotivo do Brasil, com cerca de 25% de participação. Criada em 2013, a Renova já reciclou mais de 30 mil veículos, 37 mil toneladas de aço e mais de 24 mil pneus, além de vender mais de um milhão de peças e dar destino correto a mais de 11 mil baterias. “A gente começou como uma operação de descarte consciente. Hoje é um negócio rentável, que gera receita e reduz custo de indenização”, afirma Daniel Morroni, diretor da empresa.

Além de diversificar as atividades do grupo Porto, a Renova ajuda a reduzir a sinistralidade da seguradora. “Quando o mercado de peças usadas passa a ter origem legal e rastreável, o roubo deixa de ser financeiramente interessante. Isso diminui o risco, o custo dos sinistros e até o valor do seguro”, diz Morroni. Segundo ele, o mercado de desmonte legalizado é hoje um instrumento de segurança pública tanto quanto ambiental.

A operação da Renova é apoiada por tecnologia. A empresa desenvolveu um sistema próprio de rastreabilidade, integrado aos Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans), que controla desde a baixa do chassi até a revenda das peças. Para estimar o potencial de lucro em cada veículo, a desmontadora aproveita o enorme acervo de imagens e orçamentos de reparos acumulados pela Porto — a seguradora tem 80 anos de mercado. “Com esse histórico, conseguimos prever quanto cada carro vale como peça e se a desmontagem compensa”, explica Morroni.

Stellantis e Porto seguem caminhos diferentes, mas convergentes. A primeira entra na desmontagem para integrar verticalmente sua cadeia e explorar novos mercados; a segunda usa a desmontagem para reduzir riscos e gerar valor de dados. Ambas ajudam a formalizar um setor ainda dominado pela informalidade e mostram que a economia circular pode ser também uma boa estratégia de negócios. “O fim da vida do carro não significa o fim do seu valor”, afirma Solti.

A tendência global de circularidade automotiva chega ao Brasil com sotaque próprio. Aqui, o fluxo de veículos vem de leilões, seguradoras e frotistas – enquanto a Europa adota programas de recompra, taxação progressiva conforme o carro envelhece ou a mera proibição de circulação de veículos obsoletos em certas áreas urbanas. O hábito de comprar peças usadas ou remanufaturadas é padrão entre caminhoneiros, mas ainda não entre motoristas. “O consumidor brasileiro já compra peça usada, mas quer confiança e procedência”, diz Solti. “Nosso papel é oferecer isso com padrão industrial e preço competitivo.”

O modelo ainda está em construção, mas aponta para um novo equilíbrio na indústria automotiva. Ao desmontar carros, Stellantis e Porto aprendem a enxergar valor no ciclo completo, e não apenas na venda inicial. A desmontagem, que parecia contraintuitiva, torna-se uma engrenagem a mais no negócio — e talvez o símbolo mais claro de uma indústria que, para seguir crescendo, precisa também saber desfazer.

Compartilhe esse artigo

Açogiga Indústrias Mecânicas

A AÇOGIGA é referência no setor metalmecânico, reconhecida por sua estrutura robusta e pela versatilidade de suas operações.
Últimas Notícias