O TCU (Tribunal de Contas da União) recomendou à ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) uma série de ações para melhorar a fiscalização das concessões ferroviárias, partindo do diagnóstico de que existiriam “debilidades estruturais” que demandam uma reorientação da reguladora diante do novo cenário do setor no país. Alguns dos pontos levantados pela auditoria da corte de contas convergem com as discussões que a ANTT já está fazendo na revisão geral do marco regulatório do segmento ferroviário, que pegou tração neste ano e deve ser concluída até 2028.
As conclusões do TCU podem, inclusive, dar algum tipo de respaldo à agência para regulamentar temas mais delicados para o mercado e que podem gerar maior resistência das concessionárias ou dos usuários para avançar. O acórdão, julgado na última quarta-feira (15), pode ser conferido aqui. À Agência iNFRA, a ANTT informou que há uma série de ações e projetos em andamento na reguladora que estão em linha com as recomendações da corte de contas. Veja aqui as medidas apontadas pela agência.
Um dos cinco achados da auditoria realizada AudPortoFerrovia (Unidade de Auditoria Especializada em Infraestrutura Portuária e Ferroviária) foi sobre o limite de dispersão tarifária dos contratos. A regra impõe a necessidade de a concessionária praticar somente valores de transporte de um determinado intervalo, ainda que seu valor máximo seja inferior ao teto da tarifa. Os técnicos concluíram, contudo, que a previsão não é capaz de garantir um tratamento isonômico dos usuários, e portanto precisaria ser aprimorada.
Segundo os auditores, houve uma replicação da regra de limites de dispersão tarifária calculada para uma licitação específica (a subconcessão da Ferrovia Norte-Sul assinada em 2019) em todos os contratos de concessão que foram posteriormente renovados – entre eles a Malha Paulista, a MRS, EFVM (Estrada de Ferro Vitória-Minas) e a EFC (Estrada de Ferro Carajás).
Com isso, a regra foi inserida nos ativos sem uma análise do perfil de cargas de cada concessionária, o que levou ao uso da cláusula sem que se atingisse o objetivo de evitar a discriminação de usuários pelos preços praticados. A partir disso, de acordo com o TCU, não houve mudança de comportamento das cobranças tarifárias.
Um dos pontos percebidos pela auditoria foi de que, em muitos casos, existem cobranças significativamente abaixo do teto tarifário, o que acontece pela distância entre esse teto e o preço praticado em razão da banda de dispersão tarifária. A recomendação da Corte, para este achado, é que a ANTT avalie a efetividade da cláusula e estude modelos alternativos para futuros contratos de concessão. Para os auditores, a agência poderia avaliar a criação de uma banda que possa ser reduzida pela ANTT para mercadorias específicas, por exemplo.
“Um efeito decorrente do achado […] é também a possibilidade de não se atingir o objetivo da regra contratual, relacionada ao impedimento de tratamento discriminatório entre usuários. Isso porque a regra não impede que usuários potenciais sejam afastados numa negociação por meio da oferta de preços acima da margem de dispersão e abaixo do teto (nos casos em que os preços efetivamente praticados estão distantes do teto), pois a fiscalização ocorre de maneira retrospectiva. Assim, existe risco de uso indevido da regulamentação contratual, especificamente da margem ampla da dispersão tarifária, para privar a utilização da ferrovia por novos usuários”, apontaram os auditores.
Sobre esse ponto, durante o processo da auditoria, a ANTT lembrou ao TCU que a regra tarifária é a mesma para todas as concessionárias e todas as mercadorias, e que as operadoras podem negociar com os usuários o valor da tarifa de acordo com a natureza do transporte. A reguladora afirmou também que, embora o objetivo da adoção dos limites de dispersão tarifária seja uma maior uniformização das cobranças de fretes dos usuários, as diferenças nos contratos de transportes impactam a definição das tarifas.
Ainda disse ao TCU que os limites de dispersão tarifária, isoladamente, não são capazes de impedir o tratamento discriminatório de usuários. Assim, o instrumento deve ser avaliado em conjunto com a própria fiscalização do teto tarifário e com outros instrumentos de regulação.
Como já mostrou a Agência iNFRA, na revisão do marco regulatório que está em andamento na agência, a ANTT pretende fazer uma discussão sobre tetos tarifários e casos de exceção. Uma avaliação feita entre técnicos da reguladora é que as tarifas de carga estática precisam ter um teto, sendo possível, por sua vez, discutir o limite tarifário de outras cargas, como as de contêiner. Esse ponto tende a ter mais simpatia entre as concessionárias e gerar mais discussão entre os usuários.
À reportagem, a ANTT destacou que desenvolveu uma ferramenta própria em Power BI que otimiza a coleta e análise de dados, identificando tarifas acima do teto ou fora do limite de dispersão com maior agilidade e precisão. Atualmente, cinco processos de fiscalização abrangem todas as concessionárias com previsão contratual do mecanismo.
“A agência, seguindo a abordagem de regulação responsiva, estabeleceu um prazo para que as concessionárias sanem eventuais irregularidades antes de aplicar sanções”, explicou a ANTT, segundo quem, com a nova ferramenta e os processos em andamento, o órgão está se estruturando para dar publicidade aos resultados apurados em tempo hábil.
Operações acessórias e faixa de domínio
Outro tema relativo a preços mencionado na auditoria foi o das operações acessórias. Os auditores do TCU chamaram atenção para o tempo que a agência levou para regulamentar o assunto com mais clareza, por resolução publicada no final de 2023. A avaliação da AudPortoFerrovia foi de que a ausência de regras objetivas por quase uma década permitiu que concessionárias utilizassem a cobrança por esses serviços como forma de contornar os tetos tarifários estabelecidos, em prejuízo dos usuários do transporte ferroviário.
Apesar da recente regulamentação do assunto, as operações acessórias voltarão a ser tratadas no marco regulatório, conforme mostrou a Agência iNFRA em reportagem publicada nesta segunda-feira (13), já que a ANTT entende que pode dar mais transparência para essas cobranças.
No campo regulatório, a auditoria do TCU também apontou que a ANTT precisa estabelecer um plano de ação, com indicação de cronograma e responsáveis, para obter a delimitação detalhada e georreferenciada da faixa de domínio de toda a malha concedida. Segundo a corte, a normatização do tema é fundamental para a proteção do patrimônio público e a segurança das operações, e mesmo assim, após sucessivas postergações, o projeto foi retirado da Agenda Regulatória em 2022.
Relatório de Acompanhamento Anual
A auditoria do TCU também indicou no processo haver um subaproveitamento das informações geradas pela fiscalização da ANTT sobre o RAA (Relatórios de Acompanhamento Anual) – idealizado para fornecer informações relevantes sobre as condições da malha ferroviária (infraestrutura e investimentos obrigatórios), além da aplicação de recursos na ferrovia concedida.
O primeiro ponto sensível, na avaliação da AudPortoFerrovia, é que os RAAs não têm suas consultas com acesso facilitado para pessoas externas à agência. Eles também não constam dos processos de fiscalização no SEI ou no SAFF (Sistema de Acompanhamento e Fiscalização do Transporte Ferroviário) para consulta simultânea aos relatórios de fiscalização.
Nesse sentido, a recomendação aprovada pelo plenário do TCU é para que a ANTT estabeleça procedimentos formais em prol do pleno aproveitamento do relatório. Por exemplo, padronize o formato de recebimento dos dados, de modo a permitir sua consolidação e a geração de informações gerenciais sobre a evolução da infraestrutura e dos investimentos da malha. Sugeriu também que a reguladora implemente soluções tecnológicas para o registro e a análise digital de informações de campo, a exemplo do uso de aplicativos, georreferenciamento, inteligência artificial e atualização do SAFF.
Outro apontamento feito pelos auditores é de que a avaliação da efetividade da fiscalização ferroviária da ANTT é prejudicada pela insuficiência de indicadores estratégicos e operacionais. Faltariam ainda informações estruturadas relacionadas aos resultados obtidos pela fiscalização. A decisão indicou a necessidade de recomposição do quadro de pessoal da agência reguladora.
A ANTT informou à reportagem que está desenvolvendo um “Sistema de Fiscalização Documental Inteligente”, que visa padronizar e automatizar a análise de relatórios, como o RAPI (Relatório de Acompanhamento do Plano de Investimentos) e o RAIF (Relatório de Acompanhamento da Infraestrutura Ferroviária).
Segundo a reguladora, o sistema vai identificar não conformidades e inconsistências, classificando-as por risco e urgência, e se integrará diretamente ao SAFF (Sistema de Acompanhamento e Fiscalização do Transporte Ferroviário), estabelecendo um fluxo de trabalho “formal e eficiente para o tratamento das informações prestadas pelas concessionárias”. Outro foco está em padronizar o envio e o formato dos dados que compõem o RAA (Relatórios de Acompanhamento Anual), complementou o órgão.
A agência afirmou ainda que avaliará as recomendações da Corte de Contas para adotar todas as medidas necessárias, “sempre visando o alto padrão de qualidade na prestação dos serviços prestados aos usuários, respeitando aspectos legais, regulatórios e contratuais.”
Valec na Transnordestina
O TCU também julgou nesta quarta-feira um processo que apurava as responsabilidades no âmbito da antiga Valec (hoje Infra SA) pela decisão da estatal de virar acionista na concessionária TLSA (Transnordestina Logística), responsável pela exploração de infraestrutura e operação da ferrovia Nova Transnordestina. O caso remonta a 2017, quando a corte de contas entendeu que a entrada na sociedade ocorreu sem análises técnicas, e com base apenas em pareceres legais de outros órgãos.
A participação da então Valec na Nova Transnordestina começou em 2011, quando a empresa estatal realizou aporte de capital de R$ 165 milhões para adquirir ações preferenciais. Em 2013, por sua vez, a estatal assinou acordos por meio dos quais obrigou-se a ingressar como acionista minoritária da TLSA e uma das financiadoras das obras de construção da ferrovia.
A auditoria do TCU feita sobre o caso apontou que os responsáveis da Valec teriam deixado de ponderar os riscos e possíveis resultados econômicos e financeiros que poderiam advir à empresa estatal ao decidirem participar do financiamento da nova ferrovia. Por isso, foi aberto um processo específico para apurar a responsabilidade dos gestores que estavam na Valec à época.
Relator, o ministro Walton Alencar chegou a sugerir sanções para sete pessoas envolvidas, mas acabou aderindo ao voto revisor do ministro Jhonatan de Jesus, que apontou ter havido prescrição punitiva no caso. Com isso, a decisão do plenário da corte foi de reconhecer a prescrição e arquivar o processo (acórdão pode ser lido aqui).