Antes dos deslizamentos de terra provocados pela chuva de maio de 2024, que danificaram parte da malha ferroviária, vagões carregados de grãos e combustíveis circulavam até três vezes por dia entre Bento Gonçalves e Santa Tereza. Com a suspensão do tráfego após a catástrofe climática, a ferrovia começou um processo de deterioração.
Em outubro deste ano, a concessionária Rumo Logística iniciou a retirada de trilhos, dormentes e fixadores, justificando risco de roubo do material. Moradores de Faria Lemos, em Bento Gonçalves, relataram o carregamento de até três caminhões.
A denúncia levou o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Bento Gonçalves a oficiar a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) sobre a movimentação.
Em Santa Tereza, contudo, a remoção foi barrada. Segundo a prefeita Gisele Caumo, o tombamento histórico do município, que inclui prédios e paisagem protegidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), garantiu a permanência dos trilhos.
— A Rumo já estava aqui. Recebemos a denúncia e ligamos diretamente para o Iphan, que suspendeu a ação. Nosso trecho não foi danificado (pela enchente), o que falta aqui é manutenção, numa situação que antecede as catástrofes climáticas. Estamos retrocedendo, enquanto os países avançam no desenvolvimento das malhas ferroviárias, o nosso país retira trilhos — relatou a prefeita.
Em todo o Estado, a malha ferroviária gaúcha perdeu 75% dos trilhos operacionais desde a concessão a concessão, em 1997. Naquele ano, o RS repassou os 3,8 mil quilômetros da estrutura a uma empresa particular (a antiga ALL, hoje Rumo). Atualmente, restam 921 em operação. O contrato atual termina em fevereiro de 2027.
Governo estadual, entidades empresariais e o Ministério Público Federal contestam o desmonte da rede e questionam a atuação da Rumo em diferentes pontos do Estado.
Posição da Rumo e ANTT
Após ser notificada pelas prefeituras da Serra, a ANTT determinou a paralisação da remoção dos trilhos em ambos os municípios, oficiando a Rumo para que qualquer deslocamento de material ocorra exclusivamente dentro do Rio Grande do Sul.
Segundo o presidente do Sindicato dos Ferroviários do Rio Grande do Sul (Sindifergs), João Calegari parte do material foi levada para Santa Catarina.
Por meio de nota, a Rumo informou que “o remanejamento de trilhos para trechos que permanecem operacionais na Malha Sul foi um procedimento pontual de otimização, já concluído, realizado em conformidade com a regulamentação do setor e com autorização expressa da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).”
O comunicado também afirma que a empresa “permanece em diálogo com o Governo Federal sobre a situação da infraestrutura ferroviária no Rio Grande do Sul e segue atuando dentro de todas as autorizações legais e regulatórias emitidas pela ANTT.”
Comunidade presenciou a retirada
A ausência do trem, responsável por quebrar diariamente o silêncio das localidades, é sentida pelos moradores que vivenciaram a cheia do Rio das Antas. Não ver mais o trem passando é também uma lembrança do que a natureza foi capaz de causar naqueles dias. A remoção de parte dos trilhos foi presenciadas por eles, que sem protestar, lamentaram a retirada de parte da história e do movimento diário de comunidades que se esvaziaram após a cheia do rio.
Sentados na varanda, os amigos Darci Trevisan, 74, e Airton de Oliveira, 64, debatiam sobre a possibilidade de um dia os trilhos serem refeitos para o trem voltar a passar.
— Quando ouvia o barulho dele corria na porta para contar quantos vagões passavam. Era sempre mais de 60, teve vezes que contei mais de cem. Pensa a quantidade de carga que não se deixou de transportar desde o ano passado. A queda das barreiras levou muitos trilhos, mas encobriu muitos também, não seria tão difícil assim refazer, é só querer.
O agricultor Jorge Pasin, 66, mora às margens da rodovia e lembra quando o maquinário começou a trafegar por ali quando ainda era criança.
— Eu tinha três anos quando o trem começou passar. Um dia disseram que chegaria o dia que ele passaria do comprimento da ponte e foi verdade, ele chegava a ter mais de um quilômetro de comprimento. Agora só sobrou brita e dormente.
Na ponte próxima à casa da família Pasin, toda a malha ferroviária foi preservada. É o único ponto em um trecho de 10 quilômetros em que a estrutura de ferro foi mantida.